Centro de aquicultura integra projeto internacional para investigar produção de alimentos em cidades

Pesquisas mostram vantagens ambientais da aquaponia urbana, que combina agricultura e criação de peixes e crustáceos, como alternativa ao modelo do agronegócio de monocultura no campo.

O crescimento da população e sua concentração majoritariamente nos centros urbanos impõem um imenso desafio à produção de alimentos, de forma a conseguir, ao mesmo tempo, atender ao aumento da demanda e fazê-lo por meio de práticas sustentáveis. No Brasil, por exemplo, 87% da população já vive em cidades e, segundo o documento Prospecto de Urbanização Mundial, publicado em 2018 pela ONU, esse número subirá para 92,4% até 2050.

Embora o país seja reconhecido mundialmente pela sua capacidade de produzir alimentos, boa parte dessa produção está baseada em sistemas lineares de monoculturas. Esses sistemas encontram-se distantes dos principais centros urbanos, o que implica uma série de impactos ambientais, além de gasto de energia (em geral, na forma de combustíveis fósseis) para levar o alimento até os consumidores.

Um projeto de pesquisa desenvolvido no Centro de Aquicultura da Unesp (Caunesp) procurou atacar esses dois desafios estudando um sistema de produção ainda pouco aplicado no Brasil, a aquaponia. Como explica a bióloga Maria Célia Portella, que é docente e pesquisadora do Caunesp, a aquaponia é definida como um sistema agroalimentar capaz de integrar agricultura e aquicultura. Nesse sistema, explica, a água e os nutrientes utilizados na produção de peixes ou camarões (ou ambos), por exemplo, são reaproveitados para a irrigação e a alimentação do componente vegetal da hidroponia, as plantas.

De forma simplificada, a fonte de alimentação do sistema continua sendo a ração, que é fornecida aos peixes. Depois de consumida, uma parte dessa ração é excretada na forma de fezes ou urina pelos peixes. Já a ração que não foi ingerida simplesmente se dissolve na água. Ambos os resíduos são ricos em nutrientes mas, quando despejados em rios e lagos, podem tornar a água nutritiva a ponto de estimular o aumento de microrganismos decompositores que reduzem o oxigênio disponível, causando a eutrofização. Este é considerado um processo poluidor, que pode ocasionar a morte de diversas espécies vegetais e animais.  “O que nós fazemos na aquaponia é passar essa água potencialmente poluidora por um filtro biológico, que torna esses nutrientes assimiláveis pelas plantas, que em seguida devolvem essa água mais limpa para os peixes novamente”, resume Portella, que foi presidente da World Aquaculture Society.

Sistemas integrados, como o descrito pela pesquisadora da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias da Unesp, câmpus de Jaboticabal, têm entre seus principais benefícios o potencial de otimizar o uso de insumos na produção, promover a economia de água, reduzir e reutilizar os resíduos gerados pelo sistema e, no caso específico da aquaponia, serem instalados perto ou mesmo no interior dos centros urbanos em que vivem os consumidores.

A perspectiva dos benefícios da construção de sistemas aquapônicos em ambientes urbanos, e também dos desafios que isso envolve, estimulou a criação de uma rede internacional de pesquisadores da qual o Caunesp faz parte ao lado de instituições da Noruega, Alemanha, Suécia, Holanda e Estados Unido. O projeto CityFood: Sistemas multitróficos inteligentes e integrados para produção urbana de alimentos: uma abordagem para economia de água e energia visando a urbanização global envolve recursos do Fórum Belmont, entidade que reúne algumas das principais agências financiadoras de projetos de pesquisas relacionadas às mudanças ambientais do mundo, entre elas a Fapesp, que financiou o projeto desenvolvido pelo Caunesp.

Mapeando a aquoponia no Brasil

Uma das primeiras iniciativas dos pesquisadores brasileiros, ainda no início do projeto, em 2018, foi conhecer o atual cenário da produção em aquaponia no Brasil, uma vez que na época ainda não se tinha conhecimento de qualquer entidade comercial que representasse esses produtores. “Os dados foram coletados antes da pandemia de Covid-19 e estão sendo atualizados porque temos a percepção de que o cenário pode ter sofrido mudanças em virtude da pandemia”, afirma Portella, apontando que a pesquisa provavelmente não alcançou a totalidade de produtores, e mesmo grandes empresas de aquaponia ficaram excluídas do levantamento.

Ainda assim, Portella entende que as informações relacionadas à geografia das produções e às espécies de peixes e plantas mais cultivados estão de acordo com realidade dos produtores. Esses dados apontaram que mais de 65% dos produtores estavam localizados na região Sul ou Sudeste. Embora a maior parte deles (64%) esteja localizada em áreas urbanas, ou seja, dentro do escopo do projeto de pesquisa, cerca de um terço deles tem como objetivo a subsistência e outro terço a produção comercial. Ainda que os dados demonstrem uma extensa diversidade de espécies em produção, a alface e a cebolinha foram os vegetais mais cultivados, enquanto a tilápia-do-nilo e a carpa-comum foram as espécies de peixes mais mencionadas.

Os dados confirmaram que a aquaponia ainda é considerada uma novidade entre produtores brasileiros, sendo o primeiro sistema colocado em prática em 2006. Ainda assim, houve um crescimento no número de produtores, em especial nos dois anos anteriores à aplicação da pesquisa. De acordo com os pesquisadores, a diversidade de espécies cultivadas mostra o interesse em adaptar a produção à realidade local e dos consumidores, rejeitando a ideia de um “pacote tecnológico” que seja comum a todos os produtores.

Placa solares no teto do “living lab”

A maior parte dos projetos de pesquisa desenvolvidos em Jaboticabal, entretanto, tiveram como foco o aprimoramento dos sistemas aquapônicos, considerando sua produção em um ambiente urbano. Para isso, foi construído no Caunesp um dos quatro “living labs” financiados pelo projeto CityFood. A estrutura, com 100m2 e instalada dentro de uma estufa metálica, abriga 16 unidades experimentais idênticas alimentadas por um sistema fotovoltaico para a aplicação de experimentos em um ambiente próximo da realidade de um sistema de produção no espaço urbano.

Em um desses experimentos, a equipe avaliou a introdução em sistemas aquapônicos de uma tecnologia já conhecida na aquicultura convencional, chamada bioflocos. Os bioflocos são importantes principalmente na produção de peixes em tanques porque reduzem drasticamente o desperdício de água. A tecnologia combina o nitrogênio gerado pelo resíduo da ração dos peixes com fontes de carbono, formando flocos que ficam suspensos na água. “Esses flocos acabam atraindo microrganismos, bactérias e microcrustáceos que servem de alimento aos peixes e ao mesmo tempo evitam que a água seja desperdiçada”, explica a professora.

No trabalho, o biofloco foi aplicado a culturas aquapônicas acopladas, isso é, em que peixes e plantas são cultivados no mesmo tanque, e desacopladas (ou acoplados sob demanda), quando peixes e plantas são cultivados em tanques separados mas a água e os nutrientes são compartilhados de acordo com a necessidade da produção. “Além disso, criamos mais uma variável em que diminuímos o teor de proteína na ração. Isso traz vantagens porque diminui o gasto do produtor com ração e reduz o excesso de proteina. Essa proteína se transforma em nitrogênio, que quando liberado em grandes quantidades no ambiente aquático pode ser poluente”, lembra Portella. “O laboratório tem essa característica de ser uma espécie de lego onde os pesquisadores podem desmontar e montar os componentes do sistema aquapônico de acordo com a experiência prevista no projeto”, destaca Portella.

Caminhos par diversificar a produção

Uma das questões levantadas pelos pesquisadores era se a redução de proteína na ração reduziria também a quantidade de nitrogênio disponível para as plantas, afetando seu desenvolvimento. Os experimentos mostraram que o uso dos bioflocos na aquaponia permitiu a redução de 8% do teor de proteína na ração oferecida aos peixes sem prejudicar o crescimento das plantas cultivadas separadamente.

No projeto, os pesquisadores também fizeram uma revisão da literatura e analisaram as características de cinco espécies nativas de peixes no contexto sul-americano (jundiá, lambari, pacu, tambaqui e o robalo-branco) para avaliar seu potencial na produção em aquaponia. “No mundo todo, existem três espécies que se destacam na aquaponia: a tilápia-do-nilo, salmonídeos como a truta e o salmão, e o bagre. No entanto, existe no Brasil uma demanda por diversificação da produção por conta de um mercado que busca peixes de qualidade e que nós estejamos acostumados a comer”, afirma.

O tema ganha relevância porque, na maior parte dos sistemas aquapônicos, a produção vegetal representa a maior fonte de renda dos produtores. Os peixes, embora tenham a importância de “fornecer” os nutrientes para as plantas, servem principalmente como um complemento a essa renda. Neste sentido, é interessante, por exemplo, que as espécies de peixes sejam capazes de tolerar características da água que vão atender principalmente à produção vegetal, como a tolerância a altas concentrações de macro e micronutrientes necessários para o crescimento das plantas, temperatura e o pH da água.

O artigo, publicado na revista Aquaculture International, descreve as características das cinco espécies e traça uma comparação dos parâmetros de produção e mercadológicos de duas das espécies comumente produzidas em sistemas aquapônicos, a tilápia e o bagre. O levantamento mostrou, por exemplo, que o lambari é um peixe que permite vários ciclos e tolera alta densidade nos tanques, enquanto o jundiá é uma espécie que tolera temperaturas mais baixas e tem potencial para ser produzido com vegetais com esse mesmo perfil. Já o tambaqui é um peixe de temperaturas mais altas, característica que não é tolerada por qualquer espécie vegetal.

Apresentação na ONU

A pesquisadora é uma entusiasta da produção de alimentos em sistemas integrados que têm o peixe como foco. Em outubro do ano passado, ela esteve na Assembleia Geral da ONU, onde apresentou casos brasileiros de sistemas integrados de agricultura e aquicultura, como foco na produção familiar. Para Portella, esse tipo de produção surge como uma alternativa ao sistema de monocultura dominante no país, em geral atividades voltadas para a exportação e que, no longo prazo, se mostram insustentáveis por gerarem uma série de passivos ambientais. A professora entende que para pequenos agricultores familiares que não exportam, mas vendem seus produtos no mercado, ceasas e vendas de esquina, a integração dos sistemas é muito mais viável. “O que nós percebemos é que a integração da aquicultura com outros modelos de produção podem ser sustentável e  lucrativa por conta da diversificação da produção. Além de atenderem a todos os 17 ODS, alguns direta e outros mais indiretamente”, diz.

Foto de capa: interior do “living lab”/Divulgação.