A ciência precisa de mais mulheres

Em homenagem ao Dia Internacional das Meninas e Mulheres na Ciência, o Jornal da Unesp narra as conquistas e os desafios de três pesquisadoras que fazem parte da história da universidade.

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Desde 2016, no dia 11 de fevereiro comemora-se o Dia Internacional das Meninas e Mulheres na Ciência. A data foi definida pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 2015, com o objetivo de aumentar a conscientização sobre a presença e a excelência das mulheres na ciência. Segundo dados da Unesco, as mulheres representam 33,3% de todos os pesquisadores no mundo e apenas 12% delas são membros de academias científicas nacionais. Ao olhar para áreas de tecnologia e inovação a presença de pesquisadoras cai ainda mais: elas são apenas uma em cada cinco profissionais.

Dessa forma, a data também é um lembrete de que, para desenvolver uma ciência cada vez melhor, é necessário buscar a presença e a igualdade de gênero nos diversos campos científicos. Para Audrey Azoulay, diretora-geral da Unesco, as mulheres precisam de ciência e a ciência precisa de mulheres porque, apenas explorando as diversas fontes de conhecimento e talento “será possível alcançar todo o potencial da ciência e enfrentar os desafios do nosso tempo”.

Em celebração ao 11 de fevereiro, o Jornal da Unesp entrevistou três pesquisadoras da universidade, de três áreas diferentes, para contar a história e trajetória acadêmica das cientistas. Estas mulheres vêm de diferentes trajetórias, porém todas têm em comum o amor pelo fazer científico.

Entre caranguejos e mar

Tânia Marcia Costa é bióloga marinha e pesquisadora do Instituto de Biociências da Unesp, campus Litoral Paulista. Desde cedo, ela sabia que queria seguir os estudos na biologia, e sua paixão pela ciência fica evidente pela forma como fala sobre seu trabalho e sua trajetória. Esse é um aprendizado herdado de suas orientadoras, e repassa para seus estudantes. “Eu tive orientadoras maravilhosas, que falaram ‘faça o que você gosta, que vai ser algo legal’. Elas me mostraram como esse aspecto é importante, e trago isso como um lema”, conta. Tânia é encantada por animais marinhos, e suas pesquisas se dedicam a entender de que modo seu comportamento está sendo afetado pelas mudanças climáticas.

A professora considera que sua carreira acadêmica começou na graduação, na Unesp de São José do Rio Preto. Embora a cidade do interior de São Paulo esteja a centenas de quilômetros do litoral, foi lá que o gosto pela biologia marinha teve início, durante o seu segundo ano de graduação. 

Tânia vem de uma família simples. A mãe era servente em uma escola, o pai é encanador, e desde cedo ela se deparou com a necessidade de trabalhar. Apesar disso, em sua casa sempre houve incentivo para que ela estudasse. Com a aprovação no vestibular, porém, veio outro desafio: embora residisse na mesma cidade onde ficava o câmpus, a família não tinha dinheiro para pagar o transporte até a Unesp. Sua permanência na universidade foi possível graças à bolsa do Programa de Apoio ao Estudante (PAE-Unesp), que possibilitou à Tânia cursar a graduação. Ao se formar, teve certeza de que seguiria o caminho da academia. “Eu sempre gostei de animais, então a pós-graduação não foi falta de opção, foi uma escolha.”

A pesquisadora desenvolveu o mestrado e o doutorado também na Unesp, no câmpus de Botucatu, sob a orientação da professora Maria Lucia Negreiros Fransozo. “Na época, ela estava começando uma nova linha de pesquisa. Olhava para ela e pensava: ‘é isso que eu quero ser quando crescer’”, lembra.

E deu certo. Tânia foi uma das primeiras pesquisadoras a receber uma bolsa do programa BIOTA, da Fapesp, voltado para o estudo da biodiversidade no estado de São Paulo. E hoje, é reconhecida como uma das cientistas responsáveis por ampliar nosso conhecimento sobre os oceanos. Durante o pós-doutorado, entretanto, sua pesquisa tomou outro rumo, quando foi aprovada em um concurso no campus de São Vicente da Unesp.

Lá, ela se deparou com um laboratório pequeno e com poucos recursos. Com isso, a pesquisadora voltou sua atenção para estudos que não dependiam de equipamento, e que pudessem ser desenvolvidos em campo, no meio da praia e do mangue. Assim surgiu a linha de pesquisa que Tânia segue até hoje, em que busca prever de que maneira as mudanças climáticas irão afetar animais em regiões costeiras.

Após alguns anos, os projetos de pesquisa ficaram mais ambiciosos, e ela também passou a investigar de que modo as mudanças climáticas alteram as relações entre diferentes espécies. “Quando você entende o efeito desse estressor nas interações, compreende como a estrutura da comunidade vai ser alterada”, explica. Além do aumento da temperatura, agora a pesquisadora também está considerando o fenômeno da acidificação dos oceanos. “Os projetos ficaram um pouco mais complexos, mas as respostas estão ótimas. É um novo momento do laboratório”, comenta.

Tânia é uma pesquisadora reconhecida, com colaborações no exterior – atualmente ela está desenvolvendo uma pesquisa na Universidade Estadual de Ohio, Estados Unidos.  Entretanto, ela conta que o caminho foi árduo e que ele é mais complicado para mulheres. “Se você tem um colega que faz o mesmo tipo de pesquisa que você, mas que seja um homem branco, ainda que o seu destaque seja muito maior que o dele, ele vai aparecer primeiro. Não adianta, o meio acadêmico ainda é muito machista”, desabafa.

Apesar das dificuldades, a bióloga incentiva que mais meninas e mulheres se aventurem nas ciências. A primeira dica é o lema: procurar fazer o que gosta. Depois, Tânia sugere que meninas busquem outras mulheres. “Elas vão encontrar a palavra certa para te incentivar e também para compartilhar os problemas que vocês têm em comum”, finaliza.

O acaso da história

Tânia Regina de Luca, do Departamento de História da Unesp, campus Assis, conta que encontrou seu campo de estudo por acaso, entremeado por pequenas histórias que deram certo ao longo de sua carreira. História, inclusive, não era sua primeira opção: durante o cursinho pré-vestibular, estava decidida a estudar biologia marinha. Porém, ao frequentar aulas com os professores José Jobson Arruda e Heródoto Barbeiro, descobriu o interesse pela história.

A historiadora conta que, em 1976, essa não era uma disciplina que estava em alta, principalmente por conta do contexto de ditadura militar. A disciplina, inclusive, chegou a ser retirada da grade curricular. Apesar disso, ela relata que entrar no curso de história abriu seus olhos para a realidade do país. “A consciência sobre os problemas da ditadura acabei adquirindo dentro dos prédios da USP. Até então eu não tinha nenhum tipo de consciência política”, diz.

Para Tânia, era evidente que os temas presentes no curso de história estavam relacionados com o contexto político da época, e essa relação ficou ainda mais clara quando estudou o movimento operário em uma disciplina com a professora Maria de Lourdes Mônaco Janotti. Ela viria a ser sua orientadora no mestrado e doutorado. Tânia se envolveu com o assunto “por acidente” quando, ao acompanhar um colega em uma pesquisa, deparou-se com um anuário estatístico em que constava uma seção inteira sobre Sociedades de Socorros Mútuos. 

“Hoje, o termo Sociedades de Socorros Mútuos não quer dizer muita coisa mas, naquela época, foi a forma como os operários começaram a se organizar. Na historiografia, se acreditava que eles começavam se organizando dessa forma, pagando um pouco por mês para ter um auxílio. Posteriormente, se articulavam em sindicatos e por fim aparecia o partido comunista”, explica.

Ela notou, porém, que essa percepção estava errada, porque as sociedades continuavam existindo mesmo depois da formação dos sindicatos. Dedicou sua graduação a trabalhar com esses anuários, que cobriam o período de 1890 a 1930. Como não existia fotocopiadora, ela tinha que ficar alocada na Fundação Seade “dias e dias, copiando tudo”, relembra.

Da graduação, a pesquisa avançou para o mestrado, quando analisou 300 estatutos de sociedades mutuais para comprovar que a visão que a história tinha da evolução das sociedades para os sindicatos estava errada. Para tanto, passou boa parte do tempo dentro do Arquivo do Estado, folheando os Diários Oficiais e copiando à mão todo o material. Exausta, com a conclusão do mestrado, estava decidida a não fazer um doutorado.

Uma das grandes dificuldades envolvia os dias e dias passados fora de casa para conduzir a pesquisa. Ao saber disso, sua orientadora perguntou: “e se você trabalhasse de casa?”. O pai da orientadora possuía a coleção completa da Revista do Brasil e, em homenagem, Janotti queria desenvolver um estudo sobre a publicação. “Eu, muito boba, fiquei toda feliz. Que beleza, vou ficar em casa!”, relembra a historiadora. Ela, porém, levou um susto ao buscar o material e constatar que compreendia 113 volumes de 130 páginas cada um.

Assim, sua pesquisa de doutorado teve início com o “método do desespero”, como ela chama. Concomitantemente, Tânia fez um concurso da Unesp, campus de Assis, e foi aprovada. “Por sorte, entrei para lecionar história contemporânea. Isso tinha tudo a ver com a revista que eu estudava, porque a revista circulou de 1916 a 1925”, comenta.

A cada nova pesquisa, o currículo da professora somava mais e mais análises de revistas até que se tornou especialista no assunto. Ela diz que boa parte da sua motivação para pesquisar vem da sala de aula. “Muitas das ideias que aproveitei para as minhas teses, eu as tive preparando aulas e discutindo com meus alunos. Por isso não é à toa que, quando a gente diz ensino, pesquisa e extensão, não são três palavras vazias”, garante.

Em sala, Tânia encoraja seus alunos a realizarem pesquisa desde a graduação, atuando em projetos de iniciação científica, e aconselha jovens pesquisadoras a “acreditar que podem”. “É muito importante que as mulheres tenham bem claro que podem fazer o que quiserem e que têm capacidade para isso.”

Ao ser convidada para um novo projeto, a professora encontrou um novo objeto de análise ao visitar a seção de obras raras da biblioteca da Unesp. “Eu precisava encontrar uma revista com publicação até 1914. Na biblioteca, me deparei com uma coleção de lombada vermelha que me chamou a atenção. Quando eu peguei o volume, o título era ‘A ilustração, Paris, Rio de Janeiro, Lisboa’. Como o título do projeto era ‘A circulação transatlântica dos impressos’, era uma escolha perfeita”, relata.

“De novo, foi o acaso. Porque eu não escolhi a Revista do Brasil, foi a minha orientadora; eu acompanhei um colega em sua pesquisa e vi o anuário; dessa vez, eu entrei nas obras raras e vi essa revista. Estudei-a por quatro anos e publiquei outro livro sobre o tema”, completa Tânia, que já tem publicados três livros na editora Unesp.

Experimentando em altas energias

Assim como as outras duas pesquisadoras, a física Sandra Padula, do Instituto de Física Teórica da Unesp, também se interessou pela ciência por meio da biologia. “Eu morei um tempo na casa dos meus avós, com a minha prima, e ela cursava ciências naturais. Ela começou a me explicar e contar coisas e achei tudo muito interessante. Assim, minha curiosidade para a ciência despertou”, conta. O interesse pela física, porém, surgiu na escola, ao ouvir falar sobre a bomba atômica. Impulsionada pelos horrores que a ciência podia produzir, Sandra decidiu que queria cursar física para “evitar que a ciência fosse usada dessa forma”.

Embora essa motivação tenha ficado para trás com o passar dos anos, Sandra ingressou no curso de física da USP e, logo no segundo ano, a jovem universitária entrou em contato com um professor para começar uma iniciação científica. A experiência foi um tanto desanimadora, “eu fazia serviços pouco estimulantes. Minha orientadora me deu um programa que eles tinham recebido e me pediu para ver o que aquele código fazia”, lembra.

Após isso, Sandra foi atrás de outro professor, na área de física matemática, que a acompanhou no final da graduação. Seu caminho mudou mais uma vez quando o orientador saiu do país e ela cursou o mestrado com outro professor, no campo de fenomenologia de partículas. Iniciou o doutorado com o mesmo pesquisador, porém, um ano depois, ele também foi ao exterior, e ela novamente precisou buscar um orientador.

Seu doutorado focou uma área emergente dentro da física de partículas, a física de altas energias. Esse campo tem como objetivo estudar as partículas mais fundamentais da matéria e entender como elas interagem entre si. Essa área está relacionada com um novo estado da matéria, chamado de plasma de quarks e glúons, em que estes constituintes poderiam se encontrar desconfinados dos prótons e dos nêutrons, ao contrário do que ocorre na matéria usual, quando estão confinados no interior dessas partículas. “Havia a conjectura de que esse estado ‘novo’ teria acontecido bem no início do universo, microssegundos depois do Big Bang”, explica. Assim, ela começou a pesquisar nessa área um assunto chamado “correlação de partículas idênticas”.

Sandra continuou olhando para esse assunto no seu pós-doutorado no Lawrence Berkeley Laboratory, nos Estados Unidos. De volta ao Brasil, a pesquisadora prestou concurso e ingressou no Instituto de Física Teórica da Unesp no começo de 91, onde fez seu mestrado. Sua área de atuação mudou em 2009, quando foi convidada para compor um grupo de física experimental ligado ao CERN, o centro científico que abriga o LHC, o maior colisor de partículas do mundo. Reticente a princípio, Sandra se viu envolvida com a física experimental e, desde então, trabalha nesse campo, mantendo os estudos em física de altas energias. “Eu vi que o experimental era muito legal, muito estimulante e continuei nisso”, comenta.

Em paralelo à pesquisa, Sandra também se envolve com extensão: desde 2008 ela organiza a “International Masterclass”, organizada pelo International Particle Physics Outreach Group (IPPOG), ligado ao CERN. O evento consiste em grandes aulas nas quais estudantes de ensino médio experienciam como é ser um físico de partículas durante um final de semana. Com a criação do Dia Internacional de Meninas e Mulheres na Ciência, Sandra recebeu um convite do CERN para dedicar a edição de fevereiro às mulheres. “Os meninos são bem-vindos, mas eles têm que ver que as meninas são as protagonistas”, destaca. Sandra pontua que a carreira científica é um caminho de muito trabalho – muitas vezes com noites em claro e sem finais de semana. Por isso, também defende a importância de que o pesquisador possa trabalhar com aquilo que gosta. “O fato de fazermos o que gostamos é o que nos dá energia para encarar o tanto que trabalhamos” diz. “É preciso que as meninas se deparem com mais exemplos de mulheres desempenhando funções e atividades ligadas à  ciência para que vejam que isso é possível, até que se torne algo mais natural”, diz.

Imagem acima: Sandra Padula, Tânia Marcia Costa, Tania Regina de Luca