Quando decidiu estudar para prestar o concurso para a magistratura, o jurista, desembargador aposentado e colunista Wálter Fanganiello Maierovitch começou a investir em leituras na área criminal. Aprofundou-se no tema até consolidar uma enorme biblioteca e, já no cargo de juiz, coube-lhe a tarefa de colaborar com a justiça italiana para a extradição de um mafioso capturado no Brasil.
As décadas de pesquisas sobre o tema e a experiência de colaborar com a justiça italiana no combate à máfia resultaram no livro Máfia, poder e antimáfia: um olhar pessoal sobre uma longa e sangrenta história, editado pela Editora Unesp e que foi laureado em novembro com o prêmio Jabuti, na categoria Ciências Sociais.
O livro relata a ascensão da Cosa Nostra – a organização mafiosa que surgiu na Sicília e se expandiu para os Estados Unido – e o duro combate a ela imposto por parte da força-tarefa antimáfia criada pelo governo italiano. Mas, em suas análises, Maierovitch estabelece também algumas comparações com a principal organização criminosa do Brasil, o PCC, e outras, que classifica como inseridas em um estágio “pré-máfia”. “O PCC ainda não conseguiu a força transnacional, mas já cruzou fronteiras com o Paraguai e Bolívia”, diz . “No livro, mostro um fenômeno, o crescimento do crime organizado, contra o qual o Brasil precisa reagir”, alerta.
*****
O que suscitou o seu interesse pela temática das máfias?
Wálter Maierovitch: Como eu tinha a intenção de prestar concurso para a magistratura, mas trabalhava na área cível, comecei a me dedicar a essas leituras na área criminal. E aí despertou meu interesse por esse tema específico. Além disso, há o fato de que sou de família italiana, vivi em bairro operário como parte da comunidade italiana. Um dia, quando já era juiz, recebi uma ligação do então embaixador da Itália no Brasil. Ele me pedia para receber um juiz siciliano, Giovanni Falcone, que vinha acompanhar a extradição de Tommaso Buscetta, um chefão mafioso muito conhecido.
Àquela altura eu já era muito fã dos sicilianos, lá existem escritores de primeira grandeza. Uma característica dos sicilianos é que são muito desconfiados. Então, nesse primeiro encontro, já fui com o pé atrás. Recebi Falcone com solenidade, era um encontro em que não havia lugar para brincadeira. Falcone foi meu primeiro contato e pude começar a colaborar com os magistrados da [força] antimáfia italiana, algo que durou muitos anos. Com a morte do Falcone [assassinado pela máfia], o procurador Giancarlo Caselli, que deu continuidade no caso, veio ao Brasil diversas vezes. Inclusive pra trabalhar na prevenção de grupos mafiosos. Ele deu esse alerta sobre como esse modelo de máfia é facilmente exportado para outros países. Até falo no livro que, assim como importamos a pizza e o espaguete, também podemos trazer a máfia.
Essa máfia tipo exportação foi inventada na Itália?
Wálter Maierovitch: Esse modelo exportação a que me refiro se desenvolveu quando os italianos emigraram para os Estados Unidos. Lá, houve a formação de guetos de italianos. Nos Estados Unidos, existiu um siciliano de nome Salvatore Lucania, que ficou conhecido como Lucky Luciano. Só para ter ideia da potência desse mafioso, ele criou a expressão Cosa Nostra, criou todas as regras do grupo e exerceu uma influência muito forte. Mesmo quando estava na cadeia, já condenado à prisão perpétua, tornou-se colaborador das tropas aliadas americanas na Segunda Guerra Mundial. Isso faz parte da História. Ele mantinha contato com o capitão Charles Polenti e todo desembarque das tropas aliadas – que é o primeiro desembarque europeu – se deu com apoio da máfia. Os “soldados mafiosos” levavam um lenço branco marcado com a inicial L para orientar o desembarque: o L para as tropas americanas significava Liberty, e para os mafiosos era L de Luciano.
A imigração italiana leva isso para os Estados Unidos e se dá a criação de uma máfia sículo-americana. Vale lembrar também que Mussolini queria combater a máfia e só fez aumentar a imigração para os Estados Unidos. O meu objetivo com o livro foi mostrar a máfia como uma organização transnacional, que é quando uma organização não tem limites de fronteiras.
Esse é seu terceiro livro sobre esta temática. No que ele se diferencia das obras anteriores?
Wálter Maierovitch: O meu livro Na Linha de Frente pela cidadania – a criminalidade dos potentes reúne artigos que eu havia escrito para imprensa quando fui colunista por mais de 15 anos da revista Carta Capital. Falei sobre diversos temas: sobre como a Camorra controlava o mercado da moda, como era a contrafação, episódios que aconteciam no tráfico de drogas, legislação e drogas no mundo, entre outros. No segundo, Novas tendências da criminalidade transnacional mafiosa, realizado na Itália, fui organizador juntamente com Alessandra Lino, professora titular de Sociologia jurídica da Universidade de Palermo. Ela fez uma série de entrevistas com o maior killer da história da máfia, Gaspare Spatuzza, e coordenou uma equipe de pesquisadores que produziu diversos artigos. O resultado foi um verdadeiro dossiê, uma radiografia do crime organizado naquele momento. Foi dito naquela época que a criminalidade organizada de matriz mafiosa já havia trocado a metralhadora pelo mouse do computador. Quer dizer, ela não assalta mais bancos, ela participa do conselho de administração dos bancos.
Mudou muita coisa desde então?
Wálter Maierovitch: Não houve grandes mudanças. Há uma nova situação, em que a Cosa Nostra teve de submergir porque ousou demais em termos de ações sangrentas. E a repressão do Estado italiano foi muito forte, haja vista o número de juízes mortos em represália. Mas enquanto o foco era colocado sobre a Cosa Nostra, as portas se abriram para que outras organizações mafiosas potentes se desenvolvessem e tomassem o seu lugar no mercado internacional. A ‘Ndrangheta calabresa, por exemplo, que controla o mercado de drogas e parte do mercado de armas, está mais forte que a Cosa Nostra. Hoje, temos uma organização que se move de novo no silêncio, como já se movia no tempo do Giulio Andreotti, que foi sete vezes primeiro-ministro da Itália e era mafioso.
No livro você diz que o PCC está em um estágio pré-máfia. Isso se deve ao fato de que esse grupo ainda não tem um perfil transnacional?
Wálter Maierovitch: Sim, ele ainda não conseguiu a força transnacional. Mas, veja, já ultrapassou fronteiras vizinhas com Paraguai e Bolívia. Existe uma geopolítica, uma geoeconomia e uma geoestratégia do mercado das drogas, que é um dos produtos do crime organizado. Em resumo, não adianta só possuir a folha da coca. É preciso dispor de éter e acetona para produzir a cocaína. Um antigo candidato à presidência da república disse que a primeira coisa que faria, se fosse eleito, era ir à Bolívia exigir que parassem de refinar a cocaína. Mas ele não percebia que era o Brasil que fornecia insumos para a Bolívia, que não tem indústria química. Não é culpa só da Bolívia, é do Brasil também, porque não controlamos os insumos.
É comum dizer que determinada pessoa usa drogas porque sofre de dependência, é um dependente químico. Mas, hoje não é um indivíduo que sofre com dependência das drogas, mas um país, o PIB deste país. São países cujas economias dependem do mercado das drogas. O Marrocos depende da erva canábica. A Colômbia diz que não sofre deste tipo de relação, mas é evidente que sim. E a Bolívia tem seu PIB influenciado pelo mercado da cocaína. E o Brasil finge que não está vendo isso acontecer.
Cito um jurista italiano no começo do livro, Gaetano Mosca, que diz que, para combater a criminalidade com esse porte de organização, é preciso uma mudança de cultura. A Itália fez muito, e com muito sucesso. Palermo era uma cidade onde era difícil estar na rua depois das 22h. O comércio tinha que pagar o pizzo [taxa] para a máfia local. E o que está acontecendo hoje? Vamos citar São Paulo, Rio de Janeiro… Em algumas áreas não se anda mais à noite. Basta ir para as periferias. Veja o acordo que o governo de São Paulo fez lá atrás com o PCC – depois que ele declarou guerra ao governo… Até hoje, o PCC se mexe com muita facilidade pelas periferias. E o que os políticos fazem? Nada! Porque eles querem é cuidar dos Jardins [bairros da capital paulista] por onde circulam as classes altas, ou cuidar de Ipanema, do Leblon. Precisamos dominar essa cultura. Chegamos ao ponto de as milícias controlarem territórios. Estamos em um caminho muito difícil.
No livro, você cita que a questão da diminuição do crime está diretamente ligada com a certeza da punição, não ao aumento das penas. É possível fazer um paralelo entre Brasil e Itália, no que tange à punição?
Wálter Maierovitch: A Itália teve uma organização criminosa que é a Cosa Nostra. Estamos falando de máfia, nesse estágio a que as organizações brasileiras ainda não chegaram. A Itália teve que reagir, incentivando a prevenção, atuando nas escolas. Houve investimento em uma mudança cultural. Mas a Itália teve que investir também na repressão e criar dentro do seu código penitenciário – que o Brasil não tem – um sistema de cárcere duro, só para recolher mafiosos, com uma série de limitações. O Brasil criou um sistema de presídios federais em que não se cuida de várias coisas. A Itália criou a legislação premial. O Brasil veio depois e houve um uso político disso; as delações premiadas têm sido totalmente deturpadas.
O Supremo Tribunal Federal, muitas vezes, não aproveita delações por mais evidentes e corroboradas que sejam. Só existe delação de empresários, de corruptores, como assistimos no caso Aécio Neves. O Brasil trata mal essa questão, um Brasil que chega a sua culminância com episódio de uma Lava-Jato com fatos gravíssimos e um juiz absolutamente parcial e desejoso de ter cargos maiores e que se aproveita disso vergonhosamente.
Quando a Cosa Nostra declara guerra ao governo italiano, isso pode ser comparado ao PCC declarando guerra ao estado de São Paulo?
Wálter Maierovitch: Sim, também falo sobre isso no livro. As organizações criminosas se acham com força para enfrentar o estado. São organizações que sempre, pela própria história, conseguem se infiltrar na política partidária, na institucional e, de repente, ela toma uma nova figura que resolve enfrentar o estado. Não é a maneira mais tradicional. A tradicional é cooptar, que é a “mais inteligente”, por corrupção. E elas têm um grande poder corruptor. Quando entram em embate físico com o estado, é sinal de que estão sendo dirigidas por sanguinários.
Como as máfias se situam no panorama da criminalidade internacional? Pelo noticiário, a impressão é que elas estão espalhadas pelo mundo todo…
Wálter Maierovitch: E elas estão espalhadas pelo mundo todo. Tanto é que as Nações Unidas resolveram enfrentar o problema e criar o primeiro instrumento jurídico para recomendar aos países. Hoje, existe cooperação internacional em grande escala. Temos os órgãos de inteligência financeira, como o Coaf [Conselho de Controle de Atividades Financeiras], que funcionava bem até os retrocessos causados no governo Bolsonaro para proteger os filhos envolvidos nas “rachadinhas”. Mas existe uma união de esforços internacionais para troca de informações.
E esse sistema tem funcionado?
Wálter Maierovitch: O Coaf estava funcionando bem até que veio o governo Bolsonaro. Mas é um órgão superimportante para rastrear todo tipo de lavagem de dinheiro, do mercado de arte ao de pedras preciosas, entre outros. Existe a necessidade de fazer essas verificações, o tempo todo, para que o Estado não fique fraco. De repente, o crime pode se tornar economicamente mais forte do que o Estado. Aí é o caos. O crime começa a mandar, a eleger seus representantes, a criar empecilhos…
Estamos longe desse cenário?
Wálter Maierovitch: Eu diria que já estamos nesse cenário, esse já é o nosso cotidiano, com a corrupção galopante.
O crime organizado ameaça a soberania do estado?
Wálter Maierovitch: O tempo inteiro. Há uma expressão, chamada de secessão territorial, que identifica o que acontece quando organizações criminosas conseguem controlar territórios, controlar a sociedade e impor suas regras e leis. Ali, só há a lei do crime. Então toda vez que os grupos criminosos tiverem controle do território, controle social, poder de difusão do medo, e de submeter as pessoas que vivem naquele território, perdendo a liberdade, nós temos uma secessão por organização delinquencial. O Estado não entra, as organizações delinquenciais é que tomam conta.
Foto acima: O chefe da máfia Charles ‘Lucky’ Luciano (centro) caminhando com seus capangas. Sicília, 1948. © Slim Aarons / Getty Images