A maior crise alimentar do século 21 pode estar às portas

Este ano, índice de preço de alimentos medido pela ONU bateu recorde. Organização emite alerta para possibilidade de graves problemas de abastecimento para populações pobres ainda este ano, reflexo da guerra na Europa, das mudanças climáticas e da pandemia. Desnutrição vem crescendo no planeta sem parar desde 2019.

Uma rápida conferida nos preços internacionais dos alimentos indica que eles estão em falta, parcial ou totalmente, na mesa dos mais pobres, que empregam parcela considerável de suas rendas para comprá-los. O Índice de Preços de Alimentos (IPA) da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura) mostra que estes produtos, em termos reais, ficaram 28% mais caros, entre 2020 e 2021, e 18% mais caros em 2022 (até agosto). Em março deste ano, o IPA atingiu seu pico histórico, desde 1960, em que foi primeiramente divulgado.

Isto atinge mais fortemente os países importadores líquidos de alimentos, como os da África e Ásia. Mas também afeta a população mais pobre dos países exportadores líquidos de alimentos, em decorrência do aumento de seus preços internos. Um triste exemplo é o Brasil, cujas lideranças agrícolas não cansam de disseminar os fatos (reais) de sermos o maior fornecedor mundial de proteínas animais e da elevação contínua de exportações do agronegócio, mas que, ao mesmo tempo, convive com a deterioração, desde de antes da Pandemia da Covid 19, de todos os indicadores de insegurança alimentar.

A população mundial em situação de insegurança alimentar aguda passou de 135 milhões em 2019 para 345 milhões, e atualmente 845 milhões de pessoas no planeta ainda carecem de alimentação adequada. E o quadro pode se tornar ainda mais sério. Em setembro, o Programa Mundial de Alimentos da ONU (WFP) lançou um alerta vermelho prevendo elevação do desabastecimento e da desnutrição mundial nos próximos meses. Em grande parte, associa tal situação a debilidades da oferta, causadas por conflitos bélicos, eventos climáticos extremos, consequências da Covid 19 e elevação de custos agrícolas (em especial dos fertilizantes) e dos transportes, em associação às cotações do petróleo. Exploremos um pouco mais os dois primeiros.

 Tem-se destacado bastante os efeitos negativos da Guerra Rússia-Ucrânia na oferta agrícola mundial. Estes dois países vinham, desde o início do presente século, elevando suas exportações agrícolas, transformando-se em importantes fornecedores de trigo, milho e outros produtos, em especial para os países da Europa Ocidental, além de exportarem fertilizantes. Tais fatos estão significativamente comprometidos no presente momento. Contudo, os problemas decorrentes dos conflitos bélicos há mais tempo, pelo menos desde 2015, vinham sendo apontados, em estudos da FAO como uma das principais causas do aumento da prevalência da desnutrição no mundo. Conflitos estes muito localizados na África e no Oriente Médio, podendo-se citar como o exemplo o ocorrendo há anos na Síria, cuja economia, incluindo a agricultura sofreu forte decréscimo. É bom relembrar que guerras civis e com outros países resultam também no empobrecimento da população e em maior dificuldade para acessar o alimento necessário.

Tanque russo destruído em Dmytrivka, Ucrânia. Crédito: Deposit Photos/ julitt 

Quanto a maior ocorrência de eventos climáticos extremos, no alerta vermelho da WFP são citadas inundações ou secas continuadas que vêm diminuindo a oferta agrícola no chamado Chifre da África, no Afeganistão e no Paquistão. Analisando o mercado de milho, os pesquisadores André Sanches e Carolina Sales, do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada apontam redução na produção atual dos Estados Unidos da América, Europa e China, em decorrência de ondas de forte calor. No Brasil, dados da Conab (Companhia Nacional de Abastecimento) indicam que a área plantada com soja cresceu 5%, entre 2020/21 e 2021/22, enquanto a produção caía 10%, fato muito localizado nos estados da Região Sul e Mato Grosso do Sul, afetados por problemas climáticos. Tomando cuidado com generalizações, muitos destas ocorrências podem estar relacionadas ao aquecimento climático global, cuja tendência é a de se agravar nos próximos anos.

Muito provavelmente, a humanidade não deixou de produzir comida suficiente para alimentar toda a população mundial, como os indicadores da FAO demonstravam. Contudo, as evidências apontam para uma oferta agrícola atual menos abundante, agravada pela redução continuada de estoques de alimentos, característica da política agrícola da maior parte dos países no presente século. Nesta situação, o acesso à alimentação torna-se mais difícil, especialmente pelos mais pobres. Muitos são pequenos agricultores, com produção e renda afetadas por conflitos bélicos e eventos climáticos extremos. Outros tantos foram atingidos pelos impactos negativos da Covid 19, com aumento do desemprego e queda de renda. Dada a essencialidade dos alimentos, nas crises as pessoas tendem a diminuir menos seu consumo, do que a de outros produtos, o que deixa menor espaço para redução em seus preços.  

Durante a pandemia da Covid 19, marcado pelo aumento da insegurança alimentar e da fome, houve quem ganhasse muito dinheiro, controlando parcela significativa das vendas e especulando com preços de alimentos.

Há um ingrediente poderoso a mais a se acrescentar nesta discussão. Estamos falando de produção, comércio e consumo de alimentos e, além do consumidor no final da cadeia, não podemos considerar apenas o que ocorre na produção agrícola, seja por pequeno, médio e mesmo grande agricultor, todos eles com baixo poder sobre os preços. Durante a pandemia da Covid 19, marcado pelo aumento da insegurança alimentar e da fome, houve quem ganhasse muito dinheiro, controlando parcela significativa das vendas e especulando com preços de alimentos. Relatório da OXFAM mostra que as transnacionais que dominam o comércio mundial de alimentos tiveram sua lucratividade aumentada muitas vezes de 2020 para agora.

Além das dificuldades de acesso aos alimentos, via mercado, os mais desnutridos se deparam com a tendência de as doações, governamentais e da iniciativa privada, ficarem mais escassas com a subida dos seus preços. A WPF tem-se deparado com isto já há algum tempo, enfrentando maiores dificuldades para compor suas cestas alimentares e atender um número expressivo de pessoas, quando o mercado se encontra muito atrativo.

Mulher afetada pela seca cava buraco para reter água da chiba na Etiópia. WFP/Michael Tewelde 

De tempos em tempos, as nações se reúnem e estabelecem ambiciosas metas de desenvolvimento humano. Da última vez, em 2015, entre os 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, se propôs acabar com a fome até 2030. Concretamente, a expectativa atual é que isto não será atingido, ainda que se possa continuar pensando que seria possível, deste que fosse uma vontade política dos governantes. Há várias experiências mais localizadas, de estímulo à produção de pequenos agricultores e de suplementação de renda aos mais pobres, que comprovam esta possibilidade, muito provavelmente com um custo econômico bem menor do que a de se continuar bancando as diversas guerras no mundo.

Todavia, seria importante que nos atentássemos para duas grandes novidades do atual momento: Os efeitos perversos das mudanças climáticas sobre a produção agrícola e a possibilidade de enfrentarmos um ambiente geopolítico muito mais hostil à cooperação e atitudes humanitárias, em face ao acirramento das tensões entre as grandes potências. Neste caso, o conflito Rússia-Ucrânia ganha singularidade, mesmo porque nele estão muito envolvidos EUA, Europa e China.

Jose Giacomo Baccarin é livre-docente em desenvolvimento agroindustrial e professor da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias da Unesp em Jaboticabal e foi Secretário de Segurança Alimentar e Nutricional junto ao governo Federal.

Os artigos de opinião assinados não refletem necessariamente o ponto de vista da instituição.

Imagem acima: Crianças recebem comida na escola no Butão. WFP/Kinley Wangmo.