Pela primeira vez, o número de estudantes brasileiros que cursam graduação a distância (EaD) superou o de alunos que seguem o sistema presencial. É o que revelou a edição 2021 do Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade), cujos resultados foram divulgados em setembro. De um total de 492.461 alunos que participaram do exame, 235.659, ou 48%, estavam inscritos em cursos presenciais, enquanto 256.802, ou 52%, frequentavam cursos na modalidade EaD. Das novas inscrições feitas este ano, no total de 117 mil, 78 mil destinaram-se a vagas no sistema de EaD, e 39 mil no ensino presencial.
O Enade é conduzido pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) e acontece todos os anos desde 2004. A avaliação classifica os cursos em três grandes áreas de conhecimento, por isso cada carreira é avaliada com uma periodicidade trienal. O Enade também ranqueia as instituições participantes em diferentes faixas de notas, de acordo com o desempenho dos inscritos. Dentre os cursos presenciais, 6,2% alcançaram a nota máxima. Entre os cursos EaD, este percentual foi de 2,3%
Das 1.312 instituições participantes, 82% delas eram privadas e 18% públicas. Foram avaliados 7.997 cursos de grau acadêmico de 30 áreas diferentes, dos quais 5.043 são de licenciatura, 2.121 bacharelado e 833 tecnológico. Devido à pandemia de Covid-19, a edição de 2020 não chegou a ser realizada. As provas do Enade 2021 foram realizadas no ano passado, e ofereceram uma janela para o que ocorreu no setor durante o período mais duro da pandemia. Ulisses Tavares, coordenador-geral do controle de qualidade de Educação Superior do Inep que apresentou os resultados em uma entrevista coletiva de imprensa, ponderou que os resultados são reflexos desse período pandêmico, e esse contexto pode ter relação direta com o aumento dos alunos matriculados no sistema EaD.
Alternativa de menor desgaste
Livre-docente em educação, Marilda da Silva, que é docente do Departamento de Didática da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp, câmpus de Araraquara, vê essa guinada como o desdobramento de um fenômeno bem anterior à pandemia. “Isso não surpreende. Esses números vêm crescendo desde que passou a haver oferta de formação continuada no formato EaD”, diz.
A docente diz que a maior parte dos alunos que estão dando preferência a esta modalidade de ensino pertencem às classes populares. Muitos estudam e trabalham, e procuram minorar o duro desgaste de uma jornada dupla. Ela vê esse mesmo perfil nos estudantes inscritos na própria FCLar. “Muitos estudantes vivem em cidades próximas de Araraquara. Eles trabalham durante o dia em suas cidades e de noite pegam a estrada para vir ao câmpus estudar. Terminam retornando para suas cidades de madrugada. Por isso, muitos optam pelo EaD para economizar gastos com transporte e alimentação, sem contar o cansaço”, diz.
Outra questão levantada pela professora é que não existe no país uma cultura de valorizar a aquisição de conhecimento e tampouco de ter uma formação acadêmica de boa qualidade. A universidade pública, em geral, exige mais do aluno, e muitos não estariam acostumados a esse ritmo. “O aluno quer o título, mas não se importa com conhecimento. Ele sabe que, com um diploma, pode ascender e melhorar de vida. É uma percepção equivocada de conhecimento, mas que é estrutural, causada pelo processo de escolarização que ele percorreu.”
Isso se refletiria agora numa preferência pelo EaD baseada na percepção de que são cursos mais fáceis academicamente. Com foco em alcançar o maior número possível de alunos, muitas universidades privadas estão oferecendo cursos EaD que exigem pouca dedicação e estudo e facilitam o acesso ao diploma. E o aspecto da aquisição de conhecimento simplesmente sai de cena. “Acho que esse aspecto da facilidade está contribuindo também. É preciso parar de fingir que os cursos EaD oferecem boa qualidade acadêmica. Há muito plágio entre os estudantes na execução das tarefas. Um conta para o outro ‘tem um site onde se pode copiar tudo’, e assim conseguem ser aprovados. E isso ocorre até nos cursos de pós-graduação”, diz.
Sinal da desorganização do sistema de ensino superior
Ex-presidente do Inep, o docente do Instituto de Física da USP Otaviano Helene enxerga no Enade 2021 os resultados de um processo de mudanças que teve início bem antes da pandemia. “Nos últimos quatro ou cinco anos passamos por uma desorganização do sistema [educacional]”, critica. “O ensino superior não serve mais como um processo de qualificação da população, e formação de profissionais ou desenvolvimento cultural. Virou um negócio desorganizado e isso custa muito caro para o Brasil”, diz.
Ele considera que o advento da pandemia pode ter levado muitos estudantes a optarem pelo EaD com o intuito de concluir seus estudos. Mas, em paralelo, crítica a maneira como o processo tem se dado aqui. “Nenhum país adotou o ensino a distância nos moldes que o Brasil adotou”, diz. “Aqui o EaD e as instituições privadas vieram substituir o ensino presencial e as universidades de qualidade, ainda que seja claro que algumas privadas têm qualidade”, diz.
O físico contesta não apenas as políticas adotadas para o ensino superior, mas para a educação como um todo no Brasil. Estaríamos assistindo a uma queda da qualidade do ensino superior, que visa facilitar o ingresso dos estudantes ao terceiro grau. Ele reconhece a necessidade de se democratizar o acesso à universidade, mas sustenta que isso exigiria a universalização de um ensino de qualidade na educação de nível fundamental e médio. “E isso está longe de ocorrer”, diz. É o que mostram, por exemplo, os dados do módulo Educação da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2019: mais da metade dos adultos – cerca de 70 milhões de brasileiros – não completaram o ensino médio. E ainda somamos 11 milhões de analfabetos, na população acima dos 15 anos. “Democratizar não significa oferecer ensino superior em todo lugar. Não adianta ter curso de pedagogia, administração onde não seja necessário pedagogo ou administrador”, diz.
Helene pensa que, em um país de extensão continental como o Brasil, o EaD pode ser empregado por razões práticas. Mas a forma como tem ocorrido sua expansão, favorecendo o aumento no número de vagas, seria uma impostura, um engodo. Ele acredita que o EaD deveria aparecer em cena apenas como um complemento do presencial. “Vale como um curso de extensão ou em situações extremas como a da pandemia da Covid-19”, diz.
Marilda da Silva vê mais possibilidades. “A escola pública lutou muito contra o EaD, pois temos a tradição do ensino presencial. Mas se você pensar no caso dos rincões brasileiros, por exemplo, é melhor ter esse formato do que não ter nada”, diz. Ela defende uma reorganização desses cursos para que eles possam proporcionar reais condições de aprendizado. Uma possibilidade é adotar um sistema híbrido, em que a formação teórica aconteça em EaD, mas que haja também atividades presenciais – um exemplo seria a realização dos estágios docentes obrigatórios para a formação de professores. “Não é uma questão de ganhar ou perder esse debate, mas de acompanhar o mundo e não ficar de fora do desenvolvimento”, diz.
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