Projeto de Nação apresentado pelo Exército atropela a democracia e o povo brasileiro, critica pesquisadora da Unesp

Documento apresenta teses polêmicas, como defesa de privatização do SUS e cobrança de mensalidades em universidades públicas. Para estudiosa, iniciativa prima pela falta de empatia com sociedade civil, e revela desejo das Forças Armadas de se engajarem no debate político embora isso contrarie o ordenamento constitucional.

Com a presença do vice-presidente da República, Hamilton Mourão, do secretário-geral do ministério da Defesa, Sérgio José Pereira, e apoio do presidente Jair Bolsonaro, o ex-comandante do exército, general Villas-Bôas, divulgou um documento com um planejamento estratégico com o intuito de oferecer aconselhamento estratégico aos políticos que vierem a governar o Brasil pelos próximos anos. O evento aconteceu em 19 de maio, em auditório de instituição ligada ao exército, no setor militar de Brasília. Intitulado Projeto de Nação: O Brasil em 2035, o documento foi elaborado por integrantes do Instituto General Villas Bôas, Instituto Sagres e Instituto Federalista, sob a coordenação do general Luiz Eduardo Rocha Paiva. O evento foi noticiado pelos sites oficiais da Defesa e do Executivo.

 De acordo com os autores, o propósito da iniciativa é estabelecer uma estratégia nacional de longo prazo que seja apartidária e isenta de radicalismos ideológicos, étnicos, religiosos, identitários ou de qualquer natureza. Toda a estrutura do projeto, porém, descamba para uma visão autoritária do poder e da sociedade. Com aproximadamente cem páginas, o documento desenha um aparato de estrutura político-estratégica que burla a Constituição de 1988 e implica riscos ao sistema democrático vigente no país.

Em linhas gerais, o documento articula propostas a serem implementadas gradualmente, sob a coordenação de um órgão especialmente criado para este fim, distribuídas por eixos temáticos de governança nacional, geopolítica mundial, desenvolvimento nacional, ciência, tecnologia e educação, saúde, segurança e defesa nacional e segurança pública.

Entre as propostas que mais suscitaram polêmicas está a de realizar a privatização do Sistema Único de Saúde (SUS) até o ano de 2025. Ou seja, num espaço de apenas três anos, a população só poderia recorrer à infraestrutura privada de serviços de saúde. Segundo os autores do texto, “o SUS consome considerável parcela do orçamento nacional” porque desde o início “sofre com precários processos de planejamento, gestão e controle, os quais dificultam sobremaneira num adequado atendimento”.

Outro ponto que gera críticas é a determinação de que “os cidadãos brasileiros, em sua maior parte, identificam-se como conservadores evolucionistas, no campo psicossocial, e liberais”, porém, “conscientes da responsabilidade social de apoiar, com políticas públicas sustentáveis, as camadas carentes da sociedade”.

Já na esfera da educação, além de também querer cobrar as mensalidades de acesso às universidades públicas, os autores falam em “currículos desideologizados”, reforçados por valores “morais, éticos e cívicos”.

Suzeley Kalil Mathias, professora, especialista em forças armadas e segurança internacional da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Unesp, câmpus de Franca e pesquisadora do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da Universidade, critica o Projeto Nação: O Brasil em 2035 como ultrapassado, e diz que a iniciativa atropela a democracia e o povo brasileiro.

Para Mathias, o elemento mais relevante do anúncio do projeto é o fato de que os militares estão escancarando seu desejo “de participarem do processo político brasileiro sem terem sido chamados a isso”. Ela aponta como um problema grave o fato de que, por meio do documento, as forcas armadas se arroguem o direito de dizer o que é e como pensa povo brasileiro, ignorando a imensa variedade de pontos de vista e de linhagens de pensamento que habitam o nosso país. Também é preocupante o fato de que, no texto, os autores se apresentem como apoiadores da democracia, mas proponham um outro tipo de centro de governo, não eleito, com a função de acompanhar os elementos propostos ali.

 “Eles se colocam contra a Constituição. As forças armadas não representam a nação, mas insistem em querer se apresentar como poder tutelar. É impressionante a falta de empatia desses militares com a sociedade brasileira”, conclui.

Para ouvir a íntegra da entrevista ao Podcast Unesp clique abaixo.

Foto acima: Desfile militar em Brasília no dia do Exército. Crédito: agência Brasil.