É comum que, ao ouvirem o comentário “talvez seja necessário fazermos um teste para covid no seu caso”, muitas pessoas involuntariamente já comecem a coçar o nariz. É uma memória involuntária, fundada na sensação de desconforto associada à chamada coleta pelo swab nasofaríngeo. Este é o nome daquela espécie de “cotonete” esterilizado que as enfermeiras introduzem no interior da narina do paciente até alcançar a chamada nasofaringe, para em seguida aplicarem um movimento de rotação que vai lhes permitir coletar o maior número possível de células — e muito provavelmente causar algum incômodo. Já para os docentes, funcionários e estudantes da Universidade Estadual Paulista, porém, a menção aos testes pode evocar uma cena diferente, solitária e reservada, em que o indivíduo deposita saliva num pequeno frasco, sela e o entrega à enfermeira. Tudo sem qualquer sensação de incômodo ou de dor.
Esta associação é o resultado de quase dois anos de uso do processo de rastreamento por pool de saliva para o SARS-CoV2, que foi desenvolvido inicialmente para ser utilizado no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Botucatu, e passou a ser usado pela comunidade unespiana. Trata-se de uma tecnologia social que é fruto do trabalho de pesquisadores do Programa de Pós-Graduação em Pesquisa e Desenvolvimento de Biotecnologia Médica e do Laboratório de Biotecnologia Aplicada (LBA) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB). O LBA é coordenado pela farmacêutica e pesquisadora em biologia molecular com ênfase em virologia humana Rejane Maria Tommasini Grotto, que é docente na Faculdade de Ciências Agronômicas da Unesp, câmpus de Botucatu.
Ela explica que a ideia para desenvolver o processo de coleta de saliva como ponto de partida para exames clínicos para detectar o vírus SARS-CoV2 nasceu de conversas que ela manteve com o médico Carlos Magno Fortaleza, também docente da FMB e uma importante referência no campo da pesquisa médica para o combate à covid-19 em nosso país. Fortaleza também trocava ideias com os integrantes do Centro de Contingência do Coronavírus, criado ainda em fevereiro de 2020 pelo governador João Dória para articular ações de combate à pandemia em São Paulo.
Uma alternativa eficaz e bem mais barata
Havia bons motivos para pensar em alternativas ao exame “padrão ouro”, que é o de coleta por swab nasofaríngeo. O primeiro era a demanda por este tipo de exame, que havia explodido em escala literalmente planetária. O segundo era a necessidade de um profissional de enfermagem para realizar o procedimento de coleta. “Por mais que quiséssemos estabelecer um acompanhamento próximo de toda a comunidade unespiana, seria financeiramente inviável destinarmos uma enfermeira a cada uma das unidades para coletar as amostras. E ainda haveria o custo do swab utilizado em cada coleta”, explica Grotto. Por fim, constatou-se que, devido ao fato de que possuímos em nossas bocas receptores na cavidade oral e na região da língua onde o SARCS-CoV2 pode se ligar, seria possível detectá-lo por meio de um teste de saliva. Uma possibilidade que não existe no caso de outros vírus reconhecidamente letais, como o HIV.
As amostras coletadas via swab nasofaríngeo passam por uma etapa preparatória e depois de inseridas em um equipamento capaz de isolar o material genético do vírus. Esse material então é preparado e inserido em um segundo equipamento, onde será realizado teste conhecido como Transcrição Reversa Seguida de Reação em Cadeia da Polimerase, ou RT-PCR, sigla tornada célebre pela pandemia. É este teste que irá determinar a presença ou não de material genético do vírus infectando as células daquele indivíduo. O exame individual comercial sai por cerca de R$ 100.
A fim de racionalizar os recursos despendidos na realização dos testes de RT-PCR, os alunos e funcionários do LBA desenvolveram uma metodologia de pool de amostras. Nela, são colocadas em um mesmo tubo amostras de saliva de 15 pessoas, que formam uma mistura, ou pool. Esta amostra “coletiva” é preparada e submetida ao teste. Se o resultado for negativo, a informação terá custado apenas R$100 – e não R$ 1500, que seria o custo caso se tivesse testado cada amostra individualmente. Se, por outro lado, o resultado for positivo, então o material remanescente das 15 amostras é submetido a novos testes, nos quais as 15 amostras são processadas individualmente, tornando possível identificar o indivíduo ou indivíduos positivos. A isso chama-se “abrir o pool”. “O exame que usa as amostras coletadas pelo swab nasofaríngeo é um pouco mais sensível. Mas como nós fazemos testes frequentes, e essa periodicidade pode inclusive mudar segundo o acompanhamento epidemiológico, isso não fez tanta diferença”, explica Grotto.
Coleta de saliva se destinava apenas aos assintomáticos
Originalmente, assinalou-se o exame por meio de coleta de saliva aos indivíduos assintomáticos. Grotto explica que essa estratégia foi adotada um pouco depois do começo da pandemia. “No começo, os hospitais passaram a operar apenas por conta da pandemia. Mas naquele momento já havia a necessidade de que houvesse um retorno seguro das demais atividades”, diz. Ao receberem pessoas com tratamentos agendados nos hospitais – uma cirurgia, um transplante etc. – os médicos eram forçados a indagar se aquele indivíduo não poderia estar infectado pelo SARS-CoV2 de forma assintomática. Se fosse o caso, ele terminaria por infectar muitas outras pessoas no ambiente, inclusive o pessoal médico. Graças ao sistema de pool, foi possível identificar os eventuais casos assintomáticos ainda no começo, e proteger assim grande número de pacientes e de profissionais do Hospital das Clínicas de Botucatu. No ano de 2020, foram processados 10 mil testes, a partir do meio do ano.
Os bons resultados levaram à recomendação, pelo Comitê Covid-19 da Unesp, que se implantasse o processo de coleta de saliva em todas as unidades da Unesp. Atualmente, os testes já se tornaram um hábito da comunidade unespiana. O total de testes processados chegou a 240 mil. Hoje a média está em 160 testes por dia, o que dá cerca de 5 mil testes por mês. “Como estamos num momento de baixa da pandemia, o número de positivos cai muito, o que diminui também o número de vezes em que é preciso “abrir o pool”, explica a docente.
Cerca de 80% dos testes de pool de saliva são processados em Botucatu. Os demais 20% são realizados em laboratórios situados nos câmpus da Unesp em Araraquara e São José do Rio Preto.
Os bons resultados chamaram a atenção inclusive de outras instituições. Pesquisadores do Instituto Adolfo Lutz de Bauru, laboratório central de saúde do estado de São Paulo, também incorporaram o processo de trabalho, e posteriormente introduziram a coleta de saliva e a análise por pools em sua instituição.
Laboratório está solicitando patente
Além do rastreamento por pool de saliva, os pesquisadores do Programa de Pós-Graduação em Pesquisa e Desenvolvimento de Biotecnologia Médica e do Laboratório de Biotecnologia Aplicada desenvolveram também seu próprio kit para diagnosticar a covid-19. Esta iniciativa surgiu do quadro de escassez dos kits comerciais, vendidos por empresas de produtos farmacêuticos. Os kits comerciais já trazem todos os produtos químicos, além de indicações sobre o modo de empregá-los, a fim de extrair o material genético do vírus das células infectadas para que se possa proceder à detecção da presença do SARS-CoV2 em uma amostra.
No início da pandemia, a demanda internacional era tão grande que eles praticamente sumiram do mercado. “Foi uma época de confusão geral. Problemas de importação, atrasos de semanas ou meses, falta de material. E não podíamos interromper os testes, pois a vida do paciente dependia disso”, conta Grotto. A alternativa encontrada foi adquirir, isoladamente, os insumos que integravam os kits, e por meio experimental descobrir os caminhos para torná-los funcionais. O kit produzido in house, isto é, internamente, se mostrou nos testes tão eficaz quanto os seus equivalentes comerciais, e mais barato; cerca de R$ 40. O kit foi empregado durante todo o ano de 2020 e parte do ano 2021, até que o governo estadual começou a suprir o Hospital das Clínicas de Botucatu com kits comerciais.
Atualmente, o kit desenvolvido pelos pesquisadores da Unesp encontra-se em processo de registro através da Agência Unesp de Inovação. O passo seguinte será um registro junto à Agência Nacional de Vigilância Sanitária. “Existem laboratórios que vivem dificuldades, em termos de recursos, para adquirir kits do exterior. Eles poderão se beneficiar bastante de uma alternativa mais barata”, diz. Esses novos processos foram fundamentais para permitir um acompanhamento próximo da saúde da comunidade unespiana. Esse acompanhamento, por sua vez, se traduziu em uma sensação maior de segurança quando, ao longo de 2021, o retorno ao trabalho presencial, por parte dos servidores, começou a ocorrer gradativamente. ” Houve casos de pânico devido à pandemia. Acho que, além dos benefícios em termos financeiros e de logística, o fato de estarem sendo rastreadas ajudou a fazer com que as pessoas se sentissem mais seguras para voltarem ao trabalho”, pondera Grotto.
Fotos: Eliete Soares.