Qual é o futuro das bibliotecas?

A pandemia acelerou o debate sobre novos usos e funcionalidades para esses espaços. Estudiosos discutem importância da curadoria da informação proporcionada por seus profissionais e construção de uma identidade renovada que deixa para trás a combinação de estantes e silêncio para se firmar como ambiente de produção coletiva de conhecimento.

Embora tenha enfrentado mais um episódio de chuvas fortes nos últimos dias, aos poucos a cidade de Petrópolis, RJ, ensaia um retorno à normalidade. As tempestades que caíram em fevereiro e provocaram desabamentos deixaram 233 mortos e um prejuízo que foi estimado em R$ 665 milhões, apenas no que tange as perdas sofridas por empresas. Porém, outras formas de prejuízo podem ser mais difíceis de aquilatar. Na Biblioteca Municipal Gabriela Mistral, a água, que chegou a 1,5m de altura, danificou oito mil livros, o equivalente a 5,5% do total de 150 mil obras preservadas pela instituição. O número respeitável de livros em suas estantes é um reflexo da antiguidade do acervo, que começou a ser coletado em 1871 pela Câmara Municipal, e que coloca a Gabriela Mistral entre as principais bibliotecas do estado do RJ. Agora, enquanto os funcionários da instituição se dedicam a tentar salvar pelo menos uma parte dos livros danificados através de procedimentos de recuperação, a Gabriela Mistral segue fechada desde fevereiro.   

Porém, é possível que muitos moradores da cidade sequer cheguem a perceber que a biblioteca está fechada. Afinal, qualquer pessoa que disponha de uma conexão com a internet pode ter acesso a literalmente milhões de livros em formato digital, em diversas línguas, a qualquer momento. Certos sites de compartilhamento de arquivos, por exemplo, já possuem um catálogo que ultrapassa a marca de 10 milhões de obras, em diversas línguas, que podem ser baixados gratuitamente. Para os que estão dispostos a pagar uma quantia módica, há serviços que cobram valores abaixo dos R$ 20 para ofertar acesso instantâneo a mais de um milhão de títulos. Num mundo onde o acesso a livros e publicações pode se dar sem que precisemos nos levantar da cadeira, qual é exatamente a função de espaços como a Gabriela Mistral?  Este é um debate que vem sendo travado com intensidade por pesquisadores de áreas como ciência da informação e biblioteconomia.

É preciso considerar que não é a primeira vez que as bibliotecas são chamadas à se readaptarem devido à transformações tecnológicas e sociais. Desde seu surgimento na Antiguidade, até o final da Idade Média, a função das bibliotecas estava mais voltada à custódia, preservação, reprodução e, no caso de obras profanas, controle dos manuscritos. Com a invenção da imprensa, em cujo rastro vieram a difusão da aprendizagem e a valorização do conhecimento típicas do Renascimento, a biblioteca aos poucos foi se transformando numa instituição de caráter público e voltada à democratização do acesso à informação, perfil que tem perdurado até hoje..

Ainda é cedo para apontar as transformações que a Covid-19 irá trazer à sociedade, mas já é possível notar que a pandemia acelerou algumas tendências que já estavam em curso. Entre elas estão o uso de tecnologias da informação e da comunicação como mediadoras da aprendizagem, e a ideia de que a nossa casa se tornou um espaço de estudo e trabalho. Curiosamente, essas duas tendências dialogam diretamente com os serviços oferecidos pelas bibliotecas, levantando a discussão sobre sua função em um mundo pós-pandêmico.

Diferentes vocações para diferentes bibliotecas

A professora Helen Casarin explica que a discussão sobre o futuro das bibliotecas sempre existiu, mas ganhou força desde que surgiram as primeiras versões digitais de livros e periódicos, no início dos anos 2000. “Com a Covid-19 e a necessidade de se fechar as bibliotecas esse debate voltou”, afirma a docente do Departamento de Ciências da Informação e líder de um grupo que pesquisa comportamento e competências informacionais. Neste momento, contudo, a discussão sobre as tendências para a biblioteca envolve, entre outros pontos, a consolidação do acesso remoto e a ressignificação do espaço físico da biblioteca.

É importante fazer a ressalva de que existem diferentes tipos de bibliotecas, que por sua vez envolvem propósito e funções também distintas. Uma biblioteca pública, por exemplo, tem sua vocação voltada para a comunidade em seu entorno e à disponibilização e preservação das obras do acervo. Já as bibliotecas escolares precisam estar atentas ao currículo da escola e à Base Nacional Comum Curricular (BNCC), de forma que disponibilizem obras que estejam alinhadas com esses documentos.

Para instituições com esse perfil, lembra Helen, há uma tendência presente há algum tempo em direção à ampliação de seu acervo e das atividades criadas a partir dele, de forma a contemplar uma maior diversidade de obras e autores. “Existem grupos de bibliotecários bastante atuantes trabalhando escritores negros ou LGBTQIA+, por exemplo, assim como grupos preocupados com a acessibilidade do seu conteúdo”, explica.

Outro perfil bastante comum são as bibliotecas universitárias, que têm como principal missão apoiar a instituição a qual estão vinculadas nas atividades de ensino e pesquisa. Por conta dessa atribuição, as bibliotecas universitárias foram por muito tempo reconhecidas como as responsáveis pelo acesso a informações que não estavam facilmente disponíveis à comunidade, como livros e revistas caros ou raros. “Por muito tempo, as próprias editoras científicas tinham as bibliotecas como seu principal público-alvo. Focar o aluno e pesquisador como público alvo é algo recente”, afirma.

Bibliotecas privilegiam acesso remoto

Além de afetar a relação entre editoras e as bibliotecas, a popularização da internet e das novas tecnologias da informação já vinha transformando a relação do próprio usuário com a biblioteca universitária, que cada vez mais dá preferência ao acesso remoto em detrimento dos serviços presenciais. Com a pandemia, essa tendência parece ter se consolidado de vez. É o que aponta o último Relatório de Tendências elaborado pela Federação Internacional de Associações e Instituições Bibliotecárias (IFLA). um órgão internacional independente de quase cem anos que tem por função representar e valorizar os serviços de biblioteca e de informação. Para a elaboração deste documento anual, a entidade consultou gestores de bibliotecas emergentes de todo o mundo para identificar 20 tendências e discutir a forma como as instituições devem trabalhá-las.

Helen explica que o usuário dispõe hoje de várias formas de acessar a informação, não mais dependendo da biblioteca para este fim. Ainda assim, é papel da instituição identificar, nesta ampla oferta de dados, os conteúdos que serão disponibilizados para o acesso da comunidade universitária, diferenciando as melhores fontes e mais confiáveis e organizando as informações de acordo com as demandas das disciplinas.

Dessa forma, se há algumas décadas a biblioteca podia ser vista como a principal fonte de acesso ao conhecimento, a tendência é que ela ganhe cada vez mais relevância orientando o usuário sobre como navegar em meio a um oceano de informações. “Ter acesso a tanta informação não significa ter habilidades e competências para escolher a informação com procedência. Essa habilidade de saber selecionar não é algo que o aluno nasce sabendo, e cada vez mais esse será o papel da biblioteca”, afirma Flávia Bastos, coordenadora da Coordenadoria Geral de Bibliotecas (CGB) da Unesp.

Embora o Relatório de Tendências elaborado pela IFLA não tenha como foco bibliotecas universitárias, algumas das projeções estão em linha com o que vem sendo observado nas bibliotecas da Unesp. Outra tendência apontada pelo relatório chama a atenção para a “redescoberta” do espaço físico da biblioteca, o que pode parecer contraditório uma vez que o acesso remoto aos seus conteúdos vem se consolidando.

Adeus ao silêncio sepulcral

O que se nota a partir do relatório e da análise da docente do câmpus de Marília é que a biblioteca seguirá atuando como espaço de estudo. Porém, aquela demanda por um ambiente de estudo e silêncio sepulcral deve ser dividida com desejos de alunos que precisam produzir materiais de forma coletiva. “Claro que espaços com este perfil destinado ao trabalho coletivo já existem na universidade, mas muitas vezes é um local aberto, ou faz muito calor, ou não tem sinal de WiFi. A biblioteca acaba oferecendo um ambiente ideal para essa produção”, afirma Helen. “A biblioteca deixou de ser o espaço do silêncio, apenas.”

Nesse sentido, as bibliotecas que antes projetavam seu espaço para abrigar livros e estantes deverão incluir – e talvez até priorizar – em seus projetos, configurações que contemplem o uso do espaço para diferentes perfis de usuário. “As bibliotecas da Unesp não têm muitas tomadas, por exemplo, e hoje muitos alunos levam seus notebooks para a faculdade”, lembra Flávia Bastos, que está à frente da Coordenadoria Geral de Bibliotecas (CGB), da Unesp. “Ao mesmo tempo, temos alunos que vão à biblioteca justamente porque não possuem esses aparelhos e precisam usar o computador”, relata.

O comentário da coordenadora joga luz sobre outra tendência que parece ter chegado para ficar: a diversidade da comunidade universitária, que se reflete nos usuários das bibliotecas. O tema, inclusive, já está na agenda das bibliotecas. 

Em outubro do ano passado, a CGB reuniu dezenas de profissionais da rede de bibliotecas da Unesp para uma palestra com a professora Ana Maria Klein, sobre Direitos Humanos, e com o professor Leonardo Lemos, que está à frente da Coordenadoria de Ações Afirmativas, Diversidade e Equidade. Entre outras ações, a coordenadoria promove práticas e políticas de combate ao assédio e à violência sexual e de gênero na Universidade. “A biblioteca é um espaço social e vivo que recebe uma imensa diversidade de pessoas. Neste sentido, ela precisa acompanhar a Unesp nas políticas de inclusão e estar pronta para recebê-las”, destaca Flávia.

Assim como já aconteceu anteriormente no curso da sua história, as bibliotecas novamente são chamadas a responder às transformações sociais e tecnológicas da sociedade. No passado, ela deixou de ser um espaço de estoque de obras e abriu suas portas para se tornar um dos motores da difusão do conhecimento. Com novas demandas por parte da sociedade e tecnologias que aumentaram o acesso à informação, a biblioteca tenta se adaptar e continuar seu papel como difusora do conhecimento, a exemplo do próprio livro, que já teve sua morte decretada tantas vezes, mas segue necessário.

Imagem acima: Deposit Photos