O próximo dia 11 de março marcará o segundo aniversário desde que a Organização Mundial da Saúde alterou o status do surto de covid-19, que teve início na China ainda em 2019, para caracterizá-lo como pandemia. Para se manter a salvo do vírus SarsCoV-2, a humanidade foi forçada a abraçar o distanciamento social ao longo destes 24 meses, e reinventar praticamente todas as esferas do cotidiano, do trabalho às relações humanas, passando pela alimentação, o lazer, e até a prática de atividades físicas. Agora, pesquisadores estão mapeando quais foram as mudanças adotadas pelos adeptos de atividades artísticas de cunho intrinsecamente coletivo, como a música feita em grupo, para que pudessem continuar a expressar seu talento mesmo enfrentando dois anos sem possibilidade de contato humano direto.
Felipe Sardinha, músico e estudante de graduação no Instituto de Artes da Unesp, dedicou o ano passado a investigar a situação dos grupos corais, através da pesquisa ‘Canto coral em meio ao distanciamento físico em São Paulo’. Com dados coletados a partir de contatos com 67 coros de diversas cidades do estado, Sardinha conseguiu traçar um panorama da situação dos regentes e coralistas nos últimos anos. Como esperado, o cenário foi de grandes dificuldades e desmotivação, especialmente nos primeiros meses. Porém, das adversidades também surgiram novidades interessantes que podem ajudar a transformar a prática do canto coral de uma forma significativa.
Coros fechando e perdendo integrantes
Dos 67 coros analisados por Sardinha, 26, ou o equivalente a 38,8%, interromperam completamente as atividades na pandemia. Estipulando-se, a partir dos dados coletados, que cada coral durante a pandemia possuía em média 30 integrantes por grupo, é possível estimar que mais de 700 pessoas possam ter se desligado dos seus corais durante o período de reclusão, considerando-se apenas o universo da pesquisa. E mesmo entre os 41 corais que permaneceram ativos, registrou-se uma redução no número de integrantes (ou coralistas, como são chamados) na maioria dos casos: a média caiu de 35 integrantes, no período anterior à pandemia, para 27 durante o isolamento
Uma constatação interessante foi a correlação entre afrequência de apresentações e de produções desenvolvidas pelos grupos antes da pandemia e a eventual continuidade de suas atividades. Dentre os que pararam devido à pandemia, apenas 42% mantinham uma frequência de apresentações mensais, bimestrais ou trimestrais. Entre os que se mantiveram ativos, esse percentual era quase o dobro: 83%. Os que seguiam uma frequência apenas semestral ou anual de apresentações corresponderam a 58% do total dos que cessaram suas atividades no período, e apenas 12% dos integrantes desse subgrupo conseguiram dar seqüência a suas atividades artísticas, ou seja, cinco vezes menos. Estes resultados mostram que os grupos mais afetados foram os que se apresentavam menos vezes, ou participavam de menos produções durante o ano, possivelmente por disporem de menos recursos humanos ou financeiros, menor quantidade de repertório ou menor acesso a oportunidades.
“Alguns regentes até responderam que mantiveram os contatos sociais com os coralistas, mas outros cortaram até isso”, diz Felipe Sardinha .”E um coro é algo muito grupal. É uma comunhão e um nivelamento da sua voz em respeito ao outro, algo muito interdependente. É triste perder esse contato e essa interação.”
Embora em mais de 60% dos casos pesquisados os grupos que se mantiveram ativos tenham preservado uma frequência semanal de ensaios, a duração média destes encontros diminuiu em 40 minutos, passando de 2h07min para 1h27min. E, é claro, o número de apresentações despencou: se antes a maioria dos corais se apresentava mais mensalmente ou bimestralmente, durante a pandemia a média passou a ser de uma apresentação por semestre. Somem-se a isso as dificuldades significativamente maiores de produção e edição de um coral por via virtual e o resultado é uma diminuição também nos repertórios dos conjuntos.
Os regentes se tornam produtores musicais
Antes que a Sars-Cov2 se tornasse uma sigla tristemente familiar no planeta, os regentes de corais dedicavam a maior parte do seu tempo e da sua energia à condução técnica e musical do coro. A necessidade de que cada integrante soltasse a voz sozinho em sua casa trouxe para o primeiro plano as tarefas ligadas à organização e à produção dos corais a distância. As limitações tecnológicas, em especial aquelas associadas à qualidade de conexão com a internet, geram sempre um atraso na transmissão que torna impossível sincronizar perfeitamente as vozes durante um ensaio virtual. A necessidade de adaptação a este contexto fez com que as atividades do regente de um coral virtual “passassem a se assemelhar à mixagem de um CD”, diz Paulo Moura, que é professor do Departamento de Música do IA-Unesp, especialista na prática e regência de canto coral e orientador da pesquisa de Sardinha.
Neste novo contexto, cada coralista passa a gravar sozinho sua faixa. Posteriormente, o regente sincroniza todas as faixas utilizando um programa de edição de áudio, e adiciona efeitos e mixagens até atingir a qualidade desejada. “Pode-se dizer que o resultado final é um produto mesmo, obtido por um processo de produção fonográfica”, compara Paulo Moura. Segundo os dados da pesquisa, entre os regentes que se incumbiram da função de editor de áudio, a grande maioria ‑ 63% ‑ não possuíam conhecimento técnico para realizar as edições no computador e teve de ‘aprender do zero’, alterando a natureza de suas funções.
Performance individual melhora durante a pandemia
Apesar de todos os impactos já mencionados, o estudo de Sardinha identificou uma consequência positiva inesperada: segundo informaram os regentes dos corais através de questionários, a performance individual dos coralistas melhorou.
Como o canto coral é uma prática essencialmente coletivista, o mais usual é que a atuação individual de cada integrante tenha menos destaque diante da performance do todo. Porém, o contexto de isolamento forçou cada coralista a praticar seu canto e a gravar as faixas individualmente. Isso proporcionou um aumento da percepção da própria voz por parte dos cantores que, somado à possibilidade de um atendimento individualizado com o regente, gerou um efeito de maior sensação de confiança, e elevação na qualidade do canto de cada um.
A expectativa dos músicos é que essa melhora individual seja refletida, também, num aumento da qualidade da performance coletiva. Isso deve ser constatado assim que for possível que os coros retomem apresentações presenciais em maior volume. “Nas entrevistas já ouvi relatos de experimentos em grupo em que se pode perceber essa melhora obtida durante a fase digital”, diz Sardinha.
Moura é docente das disciplinas de ‘Canto Coral’, ‘Técnica Vocal’, ‘Coro de Câmara’ e ‘Regência’ no câmpus de São Paulo da Unesp. Ele conta que, depois do início da pandemia, viu-se obrigado a improvisar e pensar em formas alternativas de ministrar seus cursos de forma a minimizar os danos à formação de seus alunos. Sua primeira estratégia foi recorrer a um conteúdo mais teórico, como a história do canto coral, a introdução de repertórios diferentes e o uso de gravações. Para as atividades práticas, o docente orientou os alunos a utilizarem o aplicativo ‘Discord’, que possui boa qualidade de gravação sonora, e os desafiou a cantarem e responderem a melodias de outros estudantes. Esse recurso promoveu uma interação virtual síncrona, dentro dos limites da tecnologia atual. Também foram propostas atividades testando diferentes ambientes, como o banheiro de casa e a rua, abordando a parte da música eletroacústica e das paisagens sonoras.
O coral virtual na prática: vídeo mosaico
Daniel Amato, que é regente, especialista em educação musical e estudante de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Humano e Tecnologias da Unesp em Rio Claro, também sofreu na pele os impactos da pandemia. Dois dos quatro corais que coordenava encerraram as atividades. Para que os dois remanescentes não seguissem o mesmo caminho, ele se viu obrigado a ensinar aos integrantes de mais idade como utilizar os aparelhos digitais, a fim de poderem participar dos ensaios. Em sua pesquisa de doutorado, orientado pela docente Cynthia Hiraga, ele também está investigando as adaptações feitas por outros regentes durante a pandemia.
Motivado pelo cenário de novidades ‘forçadas’ pela pandemia e sentindo falta das performances corais, Amato decidiu explorar as possibilidades oferecidas pela tecnologia. Desenvolveu então projeto de coral virtual nacional, que envolve a participação de 10 regentes e mais de 70 coralistas do Distrito Federal, São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco, Amazonas, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul e Espírito Santo. Juntos, eles interpretaram uma composição inédita: uma versão musicada do poema Contranarciso, de Paulo Leminski, de autoria de Alexandre Zilahi.
“Foram várias etapas. A maestrina Hadassa Rossiter, de Recife, produziu os áudios de ensaio com o cantor Douglas Araújo. Mandei esses áudios para um maestro de Porto Alegre, Márcio Buzatto, que gravou um vídeo regendo cada voz para os coralistas usarem como referência. A partir desses arquivos, os coralistas gravaram suas faixas em seus celulares e repassaram. Eu fiz a edição”, descreve Amato. A etapa seguinte envolveu a gravação de vídeo, que seguiu uma dinâmica parecida. O resultado final foi um vídeo em formato mosaico.
Publicado em janeiro de 2022, o vídeo mosaico já conta com mais de 1.200 visualizações no YouTube. Trata-se de um exemplo perfeito de como se materializa o ‘produto final’ da prática do coral virtual. “Tanto os regentes quanto os cantores com quem conversei não consideram o coral virtual semelhante ao canto coral convencional”, diz Amato. “Um não irá substituir o outro. O coral virtual vem para ser uma nova modalidade, uma nova linguagem artística.”
Imagem acima: trecho do vídeo com a composição Contranarciso.