Se a independência for apenas para um grupo, então não há independência para ninguém

A emancipação política de um Estado em relação a outro não é real se não contemplar toda a população do país.

O Jornal da Unesp apresenta, a partir de hoje, a série de artigos  “Brasil: Que país é esse?”, com o objetivo de analisar  os caminhos que, a partir do processo de independência, moldaram a sociedade brasileira em sua singularidade, e discutir os desafios que enfrentamos atualmente. No texto a seguir, o professor Dagoberto José Fonseca discorre sobre a ruptura entre Brasil e Portugal do ponto de vista dos escravizados e das populações afro-brasileiras e africanas.

Iniciamos o ano de 2022 com muitas ideias e ideais, enquanto sociedade brasileira. Alguns vão comemorar o centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, e também o da fundação do Partido Comunista Brasileiro. Outros, o bicentenário da independência do Brasil de Portugal em 1822. Em torno dessas comemorações haverá diversas solenidades, trazendo à tona memórias, lembranças, histórias e casos particulares e coletivos. Fatos que falam de nós e de nosso tempo, o ano de 2022. Ano emblemático para os mais místicos em decorrência de haver uma quase sequência de números 2 e a soma de todos resultar em 6. O número 6 é interpretado como o símbolo da atividade e esforço humano, além de indicar confiança e segurança, união, equilíbrio, perfeição, harmonia e poder.

Todavia, daqui onde nos situamos, queremos refletir sobre o fato de que, cerca de 200 anos atrás, o representante do Brasil, D. Pedro I, clamava aos quatro ventos, nas margens bucólicas do riacho do Ipiranga, a sua independência política de Portugal — mas, ainda assim, mantinha a sociedade brasileira cativa, escravizada. Em especial, a maioria daqueles que construíram e colonizaram a terra com seu suor, sangue e sabedoria. Isto é, a população negra, a verdadeira civilizadora e colonizadora do país e da nação desde o século 16.

O que queremos dizer com isso é que não há independência política de um Estado em relação a outro se essa independência não chega ao seu povo como um todo. Se a “independência” é para alguns poucos, ela não é para ninguém, a menos que o que se queira seja a manutenção do caos social imposto pela desigualdade sócio-étnico- racial-sexual que foi preservada como herança de um passado que nos agride e nos naturaliza. A ponto de não a jogarmos fora de fato, posto que consideramos que herança é algo para guardarmos. Porém, essa “independência” deve ser enterrada, para que se possa alcançar a independência para todos.

A frase “independência ou morte” continua atual

Muitos reinos e impérios nossos foram destruídos no continente africano, e nos trouxeram para cá como escravizados durante quatro séculos. Mas, antes que a destruição nos abatesse, buscamos estabelecer acordos comerciais, políticos e culturais com os lusos, os holandeses e tanto outros, ao longo desse terrível período histórico. Foi tudo em vão. Eles não queriam acordos, trocas, intercâmbios, amizade, convivência pacífica: somente guerras, destruições, escravismos, mortes. Em especial, dos povos Bantu, que viviam na atual região Congo-Angola, segundo relatam diversos historiadores.

Com essa afirmação não queremos menosprezar ou negligenciar o papel e a importância dos povos de outros reinos e impérios africanos da costa ocidental e mesmo da costa oriental, em particular os de Moçambique. Eles também deram parcela significativa de contribuição para a construção do território, da sociedade, das instituições, do conhecimento e da cultura brasileiros, mesmo estando igualmente submetidos ao contexto do processo de conquista e de escravização de vasto contingente humano empreendido pelas nações euro-ocidentais após o século 15.

Nós, negros, filhos d’África, que a temos marcada em nossos corpos — não só na nossa genética ou em nosso DNA mitocondrial — conhecemos a morte de dentro e de perto no Brasil. Não a vimos de binóculo, da sala, da janela ou da sacada da casa-grande. Convivemos com ela, há séculos. Mas não mais a aceitamos como companheira de nossas travessias. Queremos deixá-la com os responsáveis pelo caos.

Pintura de Jean-Baptiste Debret retratando escravos domésticos no Brasil em 1820. Crédito: Wikimedia Commons.

“Independência ou morte” foi mais do que um grito, um clamor: foi uma farsa. Por meio desta farsa, a “independência” foi anunciada para alguns poucos, bem poucos; e a “morte”, para a imensa maioria da sociedade brasileira do passado e do presente. Neste ano de 2022, vemos que a frase é atual. Ela é uma marca simbólica do escárnio e da violência que carregamos. No entanto, não podemos aceitar que nós, no presente momento histórico-social-cultural, e também político-econômico, continuemos a levar a morte para o futuro de nossa sociedade. Sociedade essa colonizada e civilizada pelos que estavam no dia a dia da senzala, das favelas, dos cortiços, das ruas, dos porões e dos camburões.

Angola e Brasil poderiam ter se unido após a independência brasileira

O fato é que Angola e Brasil, bem como os demais territórios conquistados por Portugal em solo africano, poderiam ter caminhado juntos politicamente, após a independência do Brasil de Portugal, em 1822. É importante destacar que houve interesses das sociedades de Angola, de Cabo Verde e de Guiné-Bissau em que o Brasil anexasse os territórios portugueses d’além-mar no continente africano e se transformasse em um grande império. No entanto, o Tratado de Reconhecimento da Independência do Brasil por Portugal, assinado em 1825, procurou vetar essa possibilidade, como se lê especialmente nos cinco primeiros artigos.

ARTIGO PRIMEIRO

  • SUA MAJESTADE FIDELÍSSIMA reconhece o Brasil na categoria de Império independente, e separado dos reinos de Portugal e Algarves; e a seu sobre todos muito amado, e prezado filho DOM PEDRO por Imperador, cedendo, e transferindo de sua livre vontade a soberania do dito Império ao mesmo seu filho e a seus legítimos sucessores, SUA MAJESTADE FIDELÍSSIMA toma somente e reserva para a sua pessoa o mesmo título.

ARTIGO SEGUNDO

  • SUA MAJESTADE IMPERIAL, em reconhecimento de respeito e amor a seu augusto pai o senhor DOM JOÃO SEXTO, anui a que SUA MAJESTADE FIDELÍSSIMA tome para sua pessoa o título de Imperador.

ARTIGO TERCEIRO

  • SUA MAJESTADE IMPERIAL promete não aceitar proposições de quaisquer colônias portuguesas para se reunirem ao Império do Brasil.

ARTIGO QUARTO

  • Haverá de agora em diante paz e aliança e a mais perfeita amizade entre o Império do Brasil, e os reinos de Portugal e Algarves. […]

ARTIGO QUINTO

  • Os súditos de ambas as nações, brasileira, e portuguesa, serão considerados e tratados nos respectivos Estados como os da nação mais favorecida e amiga, e seus direitos e propriedade religiosamente guardados e protegidos; ficando entendido que os atuais possuidores de bens de raiz serão mantidos na posse pacífica dos mesmos bens.

Impressão simultânea da versão do Brasil e da de Portugal pela Imprensa Imperial e Nacional no século 19 do acervo do Arquivo Nacional. Crédito: Arquivo Nacional. 

O “grito do Ipiranga” é um ato ideológico, político, diplomático e profundamente simbólico e semântico, posto que, como nos revela o Tratado acima, nem D. João VI e nem Pedro I se desvincularam. Apenas fizeram um arranjo familiar, patrimonial e mantiveram as suas coroas na cabeça. Cada um pegou uma para si, e ainda estabeleceram, com a mediação da coroa inglesa, que o Brasil jamais anexaria os territórios conquistados de Portugal no continente africano. O que queria dizer, entre outros fatores, que não haveria independência para as populações negras d’África residentes no Brasil, ou para aquelas presentes nos territórios conquistados. Desse modo, as populações negras permaneceriam sendo exploradas e expropriadas. Ou seja: “Independência, somente para os meus”. Inclusive os bens e os direitos dos portugueses no Brasil deveriam ser guardados e protegidos, como consta no Artigo quinto do Tratado, bem diferente do destino que tiveram tanto a população negra brasileira quanto a que residia nas colônias do continente africano.

Não haveria independência para as populações negras d’África residentes no Brasil, ou para aquelas presentes nos territórios conquistados. Desse modo, as populações negras permaneceriam sendo exploradas e expropriadas.

O que ficou demonstrado pelo dia 7 de setembro de 1822, e depois pelo Tratado de Reconhecimento celebrado em 1825, é que pai e filho estabeleceram como regra o que já estava dado no aspecto da política, da diplomacia e da racionalidade. Tomou-se por base a lógica portuguesa de que “não é preciso conquistar ou se anexar o que já é seu, pois já se é seu; porquanto não se precisa pegar para si o que já o tem”. No caso em questão, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Santo Tomé e Príncipe, Moçambique e Brasil. Logo, não houve independência, mas um belo arranjo na casa dos Orleans e Bragança.

Ruptura de pacto com Portugal só se completou na ditadura.

Se a Independência for vista por esse ângulo, no caleidoscópio que é a história e o nosso passado, vamos verificar que esse arranjo atravessou o século 19 e apenas no final do século 20, no dia 11 de novembro de 1975 —  isto é, 150 anos depois — o tratado entre D. João VI e D. Pedro I, pai e filho, seria rasgado. Não por um membro da dinastia Orleans e Bragança, mas pelos militares que em pleno regime militar —  iniciado por mais um golpe de Estado em nossa longa trajetória golpista — fizeram com que o Brasil fosse o primeiro país do mundo a reconhecer a independência de Angola do antigo e velho Portugal.

Angola foi o último país a alcançar a sua independência no continente africano. Ou seja: Portugal foi o derradeiro país a largar o osso, a carne e a alma do povo d’Angola. Isso terminou por contribuir para o fim de outra ditadura, a de António de Oliveira Salazar-Marcelo Caetano, a mais longa da Europa ocidental.

Em certo sentido, e de modo paradoxal, foi com o reconhecimento da independência de Angola pelo Brasil em relação a Portugal, ocorrido durante um dos períodos mais duros da nossa história republicana, que o Brasil, após 150 anos, também se torna independente, soberano e altivo frente aos interesses portugueses que nos prendiam ao passado.

No entanto, se a independência política, ideológica e diplomática do Brasil diante de Portugal também ocorreu simbolicamente em 1975, esse fator isoladamente não levou a qualquer alteração na luta contra os racismos e o “capitalismo selvagem”, nem a qualquer avanço rumo à realização da reforma agrária e agrícola, ao longo da sangrenta e violenta ditadura que perpassou boa parte da segunda metade do século 20. Os militares brasileiros intensificaram esses males sociais e aprofundaram as desigualdades sócio-étnico-raciais, as distorções regionais, de gênero e de geração, e ainda impuseram a ideologia do verde-amarelismo em um contexto de guerra fria, como bem escreveu Marilena Chauí em seu ensaio clássico “Brasil: mito fundador e sociedade autoritária”.

No Brasil, Estado, nação e sociedade civil não andaram juntos, desde a conquista do território pelos portugueses. Pelo contrário, caminharam de modo a que um não reconhecesse o outro. Desde o século 16, foram sendo apresentados e formulados, a partir das perspectivas da corte e do púlpito, das casas paroquiais, das academias científicas e literárias, ideias e ideais estranhos e alienígenas para o povo, que era em sua imensa maioria negro e indígena. Essa parte da população esteve alijada do mais básico dos direitos fundamentais: o da liberdade da vida, do acesso a terra, da autonomia política, da emancipação econômica, da soberania sobre o corpo e da independência para escolher ser e estar.

Agostinho Neto lê a proclamação de independência de Angola, em 1975. Crédito: Embaixada de Angola.

Os racismos, homofobias, sexismos, genocídios, feminicídios e etnocídios enfrentados pelas juventudes indígena e negra nos apontam que, neste bicentenário vindouro do dia 7 de setembro de 1822, temos mais permanências sociais e continuidades históricas a demonstrar nossas fraturas e crimes de lesa-humanidade perpetrados pelo Estado e por seus agentes.

Para Chauí, “não há o que comemorar” diante do contexto de virada do século 20 para o 21. Em parte concordamos, pois consideramos que a nossa história social, cultural, política, econômica é um escárnio, um paradoxo que cria outro em sequência, posto que, quando sentimos que estamos avançando, percebemos que o nosso avanço é lateral, é marginal.

Assim, se ficarmos presos aí, de fato não há o que comemorar à medida que estaremos naturalizando o que não é natural. Compreendemos que há muito que se refletir sobre o papel do sujeito branco, esse agente social, e da branquitude que ele porta, que portugueses e outros europeus trouxeram e inventaram no Brasil. Afinal, a independência, se ocorreu em alguma medida, contemplou, ontem e hoje, apenas esses grupos. E por certo os contemplará também amanhã, se permitirmos naturalmente que a história continue a ser escrita desta maneira.

É hora de equilibrar a balança

Neste bicentenário necessitamos tirar da invisibilidade a branquitude e o branco, esse outro que foi mantido aparentemente invisível e socialmente incólume, mas que se beneficiou da conquista territorial efetivada pelos portugueses e de suas políticas sociais e afirmativas. É o momento de colocarmos os filhos da nação inventada pelos africanos, ameríndios e europeus em dois pratos e construirmos o Estado a partir deles, empregando políticas de equidade. Sabemos que quando a balança somente pende para um lado, e por tanto tempo, significa que existem problemas. No nosso caso, é que os escravismos e os outros “ismos” ainda estão ditando os rumos.

Nós queremos dirigir o caminhão da história. Não ficar escondidos na boleia e nem apenas estacionar na estrada pedindo carona, ou, ainda, ficarmos sentados e de maneira tímida no assento coadjuvante de quem senta ao lado do motorista, um ser teleguiado pelo sistema.

Queremos não somente ver o passado pelas lentes do presente; almejamos ser os dirigentes do processo histórico do futuro com autodeterminação, com soberania de destino e independência para construir um projeto a partir da identidade coletiva e plural que formamos. Em síntese, como já foi dito antes, neste artigo, independência para um não é independência para ninguém.

Dagoberto José Fonseca é livre-docente em Antropologia Brasileira e docente do Departamento de Ciências Sociais da Faculdade de Ciências e Letras, câmpus de Araraquara, e coordenador Científico do Núcleo Negro da UNESP para Pesquisa e Extensão (NUPE).

Os artigos de opinião assinados não refletem necessariamente o ponto de vista da instituição.

Séries Jornal da Unesp

Este artigo faz parte da série Brasil, que país é esse? do Jornal Unesp. Em comemoração ao bicentenário da Independência do Brasil, esta série traz artigos que analisam os caminhos que moldaram a sociedade brasileira em sua singularidade e discutem os desafios que enfrentamos atualmente.

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