No mundo inteiro, a exuberância das nossas florestas serve como um cartão de visitas. Tanto a Mata Atlântica quanto a floresta Amazônica são referências globais de biodiversidade, e as denúncias de desmatamento nestes biomas chegam a ganhar repercussão internacional. Porém, o outro lado desta proeminência florestal é que outros riquíssimos biomas brasileiros, tais como o Cerrado, tendem a ficar esquecidos, e os danos a que são submetidos tendem a chamar menos atenção. Esta distorção, porém, não se limita ao Brasil, e já está gerando complicações em diferentes países. Agora, um grupo de pesquisadores luta para alterar este quadro.
O período entre 2021 e 2030 foi nomeado pela Organização das Nações Unidas como a Década de Restauração de Ecossistemas. Esta designação foi proposta com o intuito de ressaltar uma via de ação alternativa, na luta contra os gases causadores de efeito estufa, a países e instituições. O objetivo é estimular a consciência quanto à escala da devastação da cobertura vegetal do planeta, e fomentar ações e programas destinados a reverter esse quadro, com foco na mitigação do aquecimento global. Porém, o modo como a campanha está estruturada pode levar a certos equívocos e efeitos colaterais indesejáveis. Alguns biomas estão sendo privilegiados em detrimento de outros, dando margem para uma diferença de status que pode levar a que, no final do período, áreas que abrigam os biomas menos valorizados venham a ser danificadas ou mesmo destruídas em definitivo, em nome de objetivos relevantes e nobres.
Esta semana, um grupo internacional de pesquisadores criticou essa distorção em um artigo publicado na revista Journal of Applied Ecology, ligado à British Ecological Society. Os autores do artigo empregaram duas métricas. A primeira envolveu um levantamento de 50 mil menções a ecossistemas feitas na rede social Twitter, nos perfis de instituições parceiras da Década de Restauração de Ecossistemas que, em conjunto, possuem mais de 12 milhões de seguidores. Também foram avaliados outras 45 mil mensagens postadas na mesma rede em perfis de 18 grandes veículos de mídia voltados para a cobertura de temas de ciência e meio ambiente, de seis países, que possuem uma base de seguidores de 242 milhões de pessoas. As análises mostraram que havia um número muito maior de menções aos biomas florestais: 23% se referiam a florestas tropicais e subtropicais, e outros 45% tratavam exclusivamente de restauração de florestas. Quando, apara fins de comparação, a medição de menções foi associada à área ocupada por cada bioma, constatou-se que os biomas abertos receberam 9,6 vezes menos menções nos tweets, em relação aos biomas fechados.
A outra métrica usada pelos pesquisadores buscou avaliar as disparidades quanto ao conhecimento sobre os diferentes biomas e às ações adotadas em relação a eles. Ela teve por base uma análise sistemática de literatura científica armazenada no banco de dados Web of Science. Foram selecionados 367 estudos editados em inglês entre 1980 e 2021, para os quais se avaliou as coordenadas geográficas do bioma em questão e se havia menção ao plantio de árvores como ferramenta para restaurar o ecossistema. A análise mostrou que florestas tropicais, subtropicais e manguezais foram abordadas em quase 86% dos estudos mapeados, percentual em muito superior à área total do planeta que eles ocupam, estimada em 43%. Já os estudos sobre restauração em campos tropicais e subtropicais foram abordados apenas em 8.6% dos estudos, e os campos e savanas inundáveis, em 1.1%.
“Essa tendência de voltar a atenção majoritariamente para biomas fechados, como florestas tropicais, faz com que os biomas abertos como savanas, campos, desertos e campos rupestres sejam esquecidos”, diz a bióloga Alessandra Fidelis, uma das autoras do artigo. Professora do departamento de Botânica do Instituto de Biociências da Unesp no câmpus de Rio Claro, ela estuda biomas abertos, como o Pampa gaúcho e o Cerrado. “E essa tendência a privilegiar os biomas florestais acontece até mesmo entre cientistas, infelizmente”, diz.
Reflorestar para mitigar
Um artigo publicado em 2019 na revista Science ajudou a capturar a atenção da comunidade internacional para as possibilidades da restauração de florestas como mecanismo de mitigação do aquecimento global. Intitulado “The Global Tree Restoration Potential”, o texto argumentava que o planeta possui área livre disponível para que se possa adicionar o equivalente a 0,9 bilhão de hectares de floresta contínua na superfície da Terra. Estas novas florestas, por sua vez, poderiam retirar da atmosfera e fixar no solo 200 gigatoneladas de carbono, ou o equivalente a 25% do carbono atmosférico. Dentre as áreas livres que poderiam receber estas novas florestas, os autores do artigo apontavam áreas de biomas abertos, como desertos, cerrados, savanas e campos alagáveis.
“Nosso grupo publicou na Science um artigo resposta, mostrando que os cálculos estavam errados. Essa abordagem de plantar árvores não vai solucionar nossa necessidade de reduzir a emissão de combustíveis fósseis”, diz Fidelis. “E também mostramos que a proposta deles apresentava os biomas abertos como algo sem valor”, critica.
Mas bem antes da publicação do artigo na Science, os programas de restauração de florestas tropicais já funcionavam a todo vapor. Em 2011, o governo alemão e a ONG União Internacional para Conservação da Natureza lançaram, na cidade de Bonn, o chamado Desafio de Bonn, uma iniciativa para fazer com que os países do mundo se comprometessem a reflorestar o equivalente a 350 milhões de hectares até 2030. Até agora já foram plantados 210 milhões, sendo 12 milhões de hectares no Brasil.
Porém, parte desse plantio está acontecendo em regiões onde o que existe, na verdade, são biomas abertos. “Muitas pessoas estão plantando árvores nesses biomas porque acham, erradamente, que estas eram antigas áreas de floresta que foram atingidas pelo desmatamento. Já estive numa palestra de uma empresa que se orgulhava de estar reflorestando o Pampa. Mas o pampa nunca foi floresta!”, diz a bióloga. Como se não bastasse, os biomas abertos também estão sofrendo com desmatamento. No Brasil, onde 44% do território está coberto por biomas abertos, 50% do Cerrado já foram convertidos tanto para pasto quanto para uso agrícola.
A destruição destes biomas poderá gerar duras consequências ambientais. Na África, o plantio de árvores nas regiões de savana — onde reside a maior parte da população do continente, e que dela depende para o seu sustento — já causa preocupações . No Brasil, há vários povos quilombolas cujo modo de vida se baseia na vegetação do Cerrado. E as bacias de alguns dos rios mais importantes, como o São Francisco, o Araguaia, o Paraná e o Tocantins passam por aquele bioma. Ali, o plantio de árvores em grande escala afetaria o ciclo da água, pois as árvores captam e retém a água da chuva em quantidade maior, prejudicando a recarga dos lençóis freáticos. O resultado afetaria a disponibilidade de recursos hídricos nestas bacias. Além disso, estes biomas armazenam grande quantidade de carbono sob o solo, na forma de raízes e estruturas imensas e extremamente lenhosas. Porém, este carbono é liberado a medida que a vegetação é destruída.
Fidelis explica que os cientistas ainda não sabem muito bem como é a melhor maneira de recuperar áreas de biomas abertos. “Mas não é plantando árvores neles que se vai reverter os danos que já foram causados, ou mesmo salvar o planeta. Nosso objetivo, com este e com outros artigos que já publicamos, é que as pessoas compreendam o valor que os biomas abertos têm”, diz ela.
Imagem acima: Vegetação de Cerrado no interior do Brasil. Crédito: Hugo Cordeiro/iStock.