Politização: a ambiguidade que polariza

O argumento de que a politização inviabiliza o debate público sobre a pandemia ofusca a dimensão positiva da política, que se concentra no bem público e na construção de uma comunidade regida por leis iguais para todos.

O verbo politizar entrou de vez no léxico brasileiro. Ganhou circulação com um sentido negativo, sendo empregado para estigmatizar adversários e demarcar territórios, sempre em nome da ideia de que interesses políticos indevidos estariam a distorcer os termos do debate público, os valores tecnocientíficos e a adoção de medidas de impacto social.

Essa entrada em cena se fez em meio a embates acalorados, polarizados ao extremo, dispostos em um eixo no qual um abstrato “nós” deveria ser contraposto a um genérico e impreciso “eles”. A tensão entre dois polos vazios de significado maior potencializou as controvérsias e levou a que se passasse a travar uma luta para estabelecer quem “politizaria” mais as questões em discussão, cuja dimensão técnica ficaria deslocada. Com a massa de informações que circulam sem cessar no mundo atual, cada protagonista teria à disposição dados e “notícias” para fundamentar seu argumento e acusar o adversário de faltar com a verdade, de modo a instrumentalizar politicamente (partidariamente) a própria posição.

O sentido negativo do verbo “politizar” deriva, sem mediações, de uma visão deformada do conceito de política. Recuperou-se, com novos ingredientes, a velha ideia de que a política seria uma atividade suja, centrada na defesa de interesses espúrios e entregue a atores sempre propensos a manobras escusas, mentiras, dissimulações e trambiques.

Seu foco seria o controle do poder, sendo o poder entendido como fonte de maldades: força, imposição, controle, trocas de favores, luta surda de bastidores, negociações cavernosas, relações ambíguas com as grandes forças econômicas e o dinheiro. Quem se dedica à política estaria irremediavelmente comprometido com esse ambiente pouco escrupuloso.

Assim entendida, a política seguiria uma ética que não se coadunaria com a ética do senso comum, posto haver uma discrepância de entendimento entre os políticos e os cidadãos no que diz respeito aos modos de apreciar as condutas socialmente aceitas. No mundo da vida, por exemplo, a mentira e a dissimulação não são bem vistas, ao passo que, no universo político, são praticadas sem muitas restrições e têm legitimidade. A política, em suma, segue lógica própria, adota uma escala de valores que colide com o modo como as pessoas comuns interpretam a vida.

“Politizar” adquiriu o significado de atribuir caráter político a uma proposição que, em tese, deveria ser examinada com critérios não políticos, ou seja, sem contaminações ideológicas ou partidárias. “Despolitizar” uma discussão significaria, assim, afastá-la da dinâmica política ou das agendas partidárias.

O presidente Jair Bolsonaro exibe uma caixa de Hidrocloroquina. Foto: Carolina Antunes/PR

Politizar também é tornar público

Acontece que politizar também remete à ideia de que se deve “tornar pública” toda discussão que diga respeito à comunidade como um todo. Um cidadão politizado é capaz de compreender o quadro político-institucional do País e seus problemas, agindo civicamente em consonância com esse entendimento, o que o leva a se posicionar contra ou a favor determinadas propostas. Ao assim atuar, ele ajuda a ampliar o esclarecimento dos demais cidadãos. Politiza-se um grupo, por exemplo, quando se busca sensibilizá-lo para que adote uma perspectiva crítica diante do mundo. Uma discussão “despolitizada” é um exercício empobrecido, sem densidade cívica, burocratizado.

A politização carrega consigo muitas ambiguidades. Pode tanto expressar uma postura cívica e aberta ao diálogo com os demais quanto uma visão que considera que “política é tudo”, como se inexistissem outras dimensões relevantes fora dela.

A generalização de uma ideia negativa da politização ofuscou a dimensão positiva da política, aquela que se concentra no bem público, na construção de uma comunidade regida por leis iguais para todos, na formação de compreensões comuns e entendimentos convergentes, na organização dos distintos interesses coletivos.

Em um ambiente assim configurado, todas as questões sofrem para serem examinadas com equilíbrio e serenidade. Temas eminentemente técnicos são menosprezados em benefício de polêmicas inúteis, que fluem em função de interesses políticos ou eleitorais imediatos, que embaralham a discussão e confundem o público. Onde estaria a verdade: no que diz o líder que eu admiro ou nos dados técnicos e científicos acumulados por médicos e cientistas? Como esses dados devem ser divulgados e absorvidos?

A pandemia da Covid-19 exacerbou esse quadro. Ficamos exaustos de ouvir que a hidroxicloroquina e a ivermectina seriam adequados para tratar a doença, que máscaras não protegeriam e que o isolamento social impediria as pessoas de trabalharem. O fato serviu para postergar a compra de vacinas pelo governo brasileiro, o que implicou o aumento exponencial de mortos e internados. A batalha foi incessante e incluiu até mesmo a colocação em dúvida da eficácia da primeira vacina posta à disposição da população, a Coronavac, do Instituto Butantan. A “politização” dessas posturas levou a um ponto em que máscaras e distanciamento passaram a ser vistas como marcadores de uma posição de “esquerda”. O presidente da República ultrapassou os limites do “negativismo”, pondo em dúvida todas as recomendações médicas e sanitárias.

No fundo, travou-se uma batalha que terminou por engolir a dimensão técnica do problema. As vacinas, conquista histórica da humanidade, foram recebidas com desconfiança e medo. A vacinação ficou travada por uma manipulação política obscena, que atuou em favor do vírus.

Cartaz na cidade de Sofia, na Bulgária, apresenta em vermelho texto que expressa uma visão conspiratória sobre a Covid-19, e em azul uma refutação que critica o caráter populista da mensagem original e reafirma a gravidade da doença. Foto: Oleg Morgan.

A “politização” expressa uma época em que a política perdeu o valor

Políticas de saúde e políticas sanitárias são questões públicas de primeiríssima grandeza. Por isso mesmo, são sempre políticas. Mas não podem ser escravizadas por interesses políticos menores. Precisam ser integradas a uma visão de Estado, não de governos localizados. E somente são bem equacionadas, desenhadas e executadas se contarem com o devido suporte técnico-científico.

É assim com todas as políticas públicas. Sendo intervenções planejadas do poder público para enfrentar problemas sociais, elas são sempre de interesse comum, afetam a vida de todos e precisam ser financiados com impostos pagos pelos cidadãos. Estão sempre cortadas por cálculos políticos, seu próprio encaminhamento está forçado a atravessar um cipoal de passos e bloqueios políticos. Associam-se também, nos Estados modernos do nosso tempo, a direitos de cidadania e à estruturação republicana da ordem política, estando, portanto, dispostas em uma institucionalidade constitucionalmente referenciada, na qual coexistem poderes e compartilham-se deveres e responsabilidades governamentais.

A pandemia da Covid-19 mostrou a todos que crises sanitárias não podem ser enfrentadas sem a ação vigorosa do Estado e de governos capacitados para coordenar ações e orientar a população. E o fato de a Presidência da República estar ocupada por um negacionista reacionário e extremista fez com que a situação piorasse dramaticamente. Nenhuma área de governo – da Saúde e da Educação à Cultura, à Ciência & Tecnologia e à Economia – escapou do desgoverno. O País piorou demais.

Para ser enfrentada, a situação atual exige muita política, quer dizer, muita visão do bem comum e do interesse coletivo. Sem o reconhecimento das desigualdades sociais, do valor intrínseco da vida humana e da necessidade de proteger a comunidade política, sem o concurso da ciência e da educação, torna-se muito difícil escapar dos ciclos trágicos das doenças e das epidemias ou promover ações que ajudem a sociedade a passar para um patamar mais inclusivo, justo e civilizado. O País não se reerguerá sem isso.


Protesto da União Municipal dos Estudantes Secundaristas de São Paulo em abril de 2021. Foto: Roberto Parizotti

O excesso de “politização” representa, no fundo, uma recusa ao caráter político das intervenções do poder público. Expressa um rebaixamento do sentido principal das condutas governamentais. Corresponde a uma terrível incapacidade de enxergar a vida politicamente, como um fluxo de ideias e interesses que precisam ser processados, contextualizados e compostos em uma visão de conjunto.

Com suas distorções e implicações, esse tipo de “politização” traduz bem uma época na qual a política perdeu valor, a democracia representativa está em crise e as lideranças políticas se deixam atrair pelas facilidades do discurso populista. A nossa é uma época de consensos difíceis. O “desentendimento” está plantado nela, fazendo com que as paixões ideológicas venham à tona de maneira distorcida e as verdades sejam disputadas sem mediações, a não ser aquelas derivadas do ativismo digital das claques governamentais e da dinâmica das redes sociais. Uma politização bem compreendida é a meta a ser perseguida nas complexas sociedades de nossos dias. Seus pré-requisitos passam pela educação, pela democracia e pela recuperação da política como recurso básico dos humanos. Não é uma meta fácil de ser alcançada, e por isso mesmo precisa ser buscada com empenho, critério e discernimento por todos os democratas.

Imagem acima: placa que contabiliza o número de mortos na CPI do Senado. Pedro França/Agência Senado.