O verbo politizar entrou de vez no léxico brasileiro. Ganhou circulação com um sentido negativo, sendo empregado para estigmatizar adversários e demarcar territórios, sempre em nome da ideia de que interesses políticos indevidos estariam a distorcer os termos do debate público, os valores tecnocientíficos e a adoção de medidas de impacto social.
Essa entrada em cena se fez em meio a embates acalorados, polarizados ao extremo, dispostos em um eixo no qual um abstrato “nós” deveria ser contraposto a um genérico e impreciso “eles”. A tensão entre dois polos vazios de significado maior potencializou as controvérsias e levou a que se passasse a travar uma luta para estabelecer quem “politizaria” mais as questões em discussão, cuja dimensão técnica ficaria deslocada. Com a massa de informações que circulam sem cessar no mundo atual, cada protagonista teria à disposição dados e “notícias” para fundamentar seu argumento e acusar o adversário de faltar com a verdade, de modo a instrumentalizar politicamente (partidariamente) a própria posição.
O sentido negativo do verbo “politizar” deriva, sem mediações, de uma visão deformada do conceito de política. Recuperou-se, com novos ingredientes, a velha ideia de que a política seria uma atividade suja, centrada na defesa de interesses espúrios e entregue a atores sempre propensos a manobras escusas, mentiras, dissimulações e trambiques.
Seu foco seria o controle do poder, sendo o poder entendido como fonte de maldades: força, imposição, controle, trocas de favores, luta surda de bastidores, negociações cavernosas, relações ambíguas com as grandes forças econômicas e o dinheiro. Quem se dedica à política estaria irremediavelmente comprometido com esse ambiente pouco escrupuloso.
Assim entendida, a política seguiria uma ética que não se coadunaria com a ética do senso comum, posto haver uma discrepância de entendimento entre os políticos e os cidadãos no que diz respeito aos modos de apreciar as condutas socialmente aceitas. No mundo da vida, por exemplo, a mentira e a dissimulação não são bem vistas, ao passo que, no universo político, são praticadas sem muitas restrições e têm legitimidade. A política, em suma, segue lógica própria, adota uma escala de valores que colide com o modo como as pessoas comuns interpretam a vida.
“Politizar” adquiriu o significado de atribuir caráter político a uma proposição que, em tese, deveria ser examinada com critérios não políticos, ou seja, sem contaminações ideológicas ou partidárias. “Despolitizar” uma discussão significaria, assim, afastá-la da dinâmica política ou das agendas partidárias.
Politizar também é tornar público
Acontece que politizar também remete à ideia de que se deve “tornar pública” toda discussão que diga respeito à comunidade como um todo. Um cidadão politizado é capaz de compreender o quadro político-institucional do País e seus problemas, agindo civicamente em consonância com esse entendimento, o que o leva a se posicionar contra ou a favor determinadas propostas. Ao assim atuar, ele ajuda a ampliar o esclarecimento dos demais cidadãos. Politiza-se um grupo, por exemplo, quando se busca sensibilizá-lo para que adote uma perspectiva crítica diante do mundo. Uma discussão “despolitizada” é um exercício empobrecido, sem densidade cívica, burocratizado.
A politização carrega consigo muitas ambiguidades. Pode tanto expressar uma postura cívica e aberta ao diálogo com os demais quanto uma visão que considera que “política é tudo”, como se inexistissem outras dimensões relevantes fora dela.
A generalização de uma ideia negativa da politização ofuscou a dimensão positiva da política, aquela que se concentra no bem público, na construção de uma comunidade regida por leis iguais para todos, na formação de compreensões comuns e entendimentos convergentes, na organização dos distintos interesses coletivos.
Em um ambiente assim configurado, todas as questões sofrem para serem examinadas com equilíbrio e serenidade. Temas eminentemente técnicos são menosprezados em benefício de polêmicas inúteis, que fluem em função de interesses políticos ou eleitorais imediatos, que embaralham a discussão e confundem o público. Onde estaria a verdade: no que diz o líder que eu admiro ou nos dados técnicos e científicos acumulados por médicos e cientistas? Como esses dados devem ser divulgados e absorvidos?
A pandemia da Covid-19 exacerbou esse quadro. Ficamos exaustos de ouvir que a hidroxicloroquina e a ivermectina seriam adequados para tratar a doença, que máscaras não protegeriam e que o isolamento social impediria as pessoas de trabalharem. O fato serviu para postergar a compra de vacinas pelo governo brasileiro, o que implicou o aumento exponencial de mortos e internados. A batalha foi incessante e incluiu até mesmo a colocação em dúvida da eficácia da primeira vacina posta à disposição da população, a Coronavac, do Instituto Butantan. A “politização” dessas posturas levou a um ponto em que máscaras e distanciamento passaram a ser vistas como marcadores de uma posição de “esquerda”. O presidente da República ultrapassou os limites do “negativismo”, pondo em dúvida todas as recomendações médicas e sanitárias.
No fundo, travou-se uma batalha que terminou por engolir a dimensão técnica do problema. As vacinas, conquista histórica da humanidade, foram recebidas com desconfiança e medo. A vacinação ficou travada por uma manipulação política obscena, que atuou em favor do vírus.
A “politização” expressa uma época em que a política perdeu o valor
Políticas de saúde e políticas sanitárias são questões públicas de primeiríssima grandeza. Por isso mesmo, são sempre políticas. Mas não podem ser escravizadas por interesses políticos menores. Precisam ser integradas a uma visão de Estado, não de governos localizados. E somente são bem equacionadas, desenhadas e executadas se contarem com o devido suporte técnico-científico.
É assim com todas as políticas públicas. Sendo intervenções planejadas do poder público para enfrentar problemas sociais, elas são sempre de interesse comum, afetam a vida de todos e precisam ser financiados com impostos pagos pelos cidadãos. Estão sempre cortadas por cálculos políticos, seu próprio encaminhamento está forçado a atravessar um cipoal de passos e bloqueios políticos. Associam-se também, nos Estados modernos do nosso tempo, a direitos de cidadania e à estruturação republicana da ordem política, estando, portanto, dispostas em uma institucionalidade constitucionalmente referenciada, na qual coexistem poderes e compartilham-se deveres e responsabilidades governamentais.
A pandemia da Covid-19 mostrou a todos que crises sanitárias não podem ser enfrentadas sem a ação vigorosa do Estado e de governos capacitados para coordenar ações e orientar a população. E o fato de a Presidência da República estar ocupada por um negacionista reacionário e extremista fez com que a situação piorasse dramaticamente. Nenhuma área de governo – da Saúde e da Educação à Cultura, à Ciência & Tecnologia e à Economia – escapou do desgoverno. O País piorou demais.
Para ser enfrentada, a situação atual exige muita política, quer dizer, muita visão do bem comum e do interesse coletivo. Sem o reconhecimento das desigualdades sociais, do valor intrínseco da vida humana e da necessidade de proteger a comunidade política, sem o concurso da ciência e da educação, torna-se muito difícil escapar dos ciclos trágicos das doenças e das epidemias ou promover ações que ajudem a sociedade a passar para um patamar mais inclusivo, justo e civilizado. O País não se reerguerá sem isso.
O excesso de “politização” representa, no fundo, uma recusa ao caráter político das intervenções do poder público. Expressa um rebaixamento do sentido principal das condutas governamentais. Corresponde a uma terrível incapacidade de enxergar a vida politicamente, como um fluxo de ideias e interesses que precisam ser processados, contextualizados e compostos em uma visão de conjunto.
Com suas distorções e implicações, esse tipo de “politização” traduz bem uma época na qual a política perdeu valor, a democracia representativa está em crise e as lideranças políticas se deixam atrair pelas facilidades do discurso populista. A nossa é uma época de consensos difíceis. O “desentendimento” está plantado nela, fazendo com que as paixões ideológicas venham à tona de maneira distorcida e as verdades sejam disputadas sem mediações, a não ser aquelas derivadas do ativismo digital das claques governamentais e da dinâmica das redes sociais. Uma politização bem compreendida é a meta a ser perseguida nas complexas sociedades de nossos dias. Seus pré-requisitos passam pela educação, pela democracia e pela recuperação da política como recurso básico dos humanos. Não é uma meta fácil de ser alcançada, e por isso mesmo precisa ser buscada com empenho, critério e discernimento por todos os democratas.
Imagem acima: placa que contabiliza o número de mortos na CPI do Senado. Pedro França/Agência Senado.