Pela primeira vez, a Sociedade Brasileira de Física (SBF), um dos mais tradicionais órgãos de representação científica do país, elegeu uma mulher para ocupar a presidência. A escolhida foi Débora Peres Menezes, professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que já atuou como Pró-reitora da UFSC e faz parte da atual diretoria da SBF. Além de atuar como pesquisadora e gestora, Débora também se envolve com divulgação científica, ministrando cursos e conduzindo seu próprio canal no youtube, o Mulheres na Ciência. Na entrevista a seguir, Débora trata das razões por trás da pouca presença de mulheres nos cargos de direção na ciência brasileira, da perda de jovens pesquisadores para o exterior, dos problemas de comunicação entre cientistas e sociedade e da luta contra o negacionismo científico e a pseudociência: “existe também uma força econômica que age para enganar deliberadamente a população”, diz.
Este ano, a Sociedade Brasileira de Física completa 55 anos. Por que só agora uma mulher foi eleita como presidente?
Débora: Essa é uma boa pergunta. Eu tenho palpites. Na verdade, já houve duas mulheres presidentes. A diferença é que não foram eleitas, elas já eram vice-presidentes. Quando o José Roberto Leite (eleito presidente da SBF para o período entre 2001 e 2003) virou presidente do CNPq, a Elisa Saitovich assumiu. E no caso da Belita Koiller, o Ricardo Galvão (eleito para o período de 2013 a 2015) se tornou diretor do INPE, e a Belita assumiu a presidência. O que nunca aconteceu antes foi que uma mulher se candidatasse como cabeça de chapa. Eu tenho várias hipóteses para explicar isso.
Uma das hipóteses é que, de fato, [os sócios da SBF] são 70% de homens e 30% de mulheres; são muito mais homens do que mulheres. Outra hipótese é que essa não é uma decisão tão simples. Existe uma coisa chamada efeito tesoura, que diz respeito ao corte das mulheres de posições que permitem ascensão profissional. E foi justamente o fato de eu falar tanto sobre esse assunto que me fez aceitar concorrer à presidência. Eu sempre digo: “as mulheres não têm chance, elas sempre são cortadas” do acesso a essas posições mais elevadas. E, na hora em que surgiu a oportunidade para que eu fosse cabeça de chapa, minha primeira reação foi dizer “não, que maluquice. Eu já tenho tanta coisa pra fazer”. Mas, depois, esse argumento do efeito tesoura me pegou. Eu falo que as mulheres não têm acesso a posições de destaque e quando surge a possibilidade de concorrer, digo que não? Acabei aceitando.
Talvez essa oportunidade nunca tenha aparecido antes [para outra mulher]. Ou, talvez, tenha aparecido e as mulheres tenham se sentido inseguras para concorrer.
Você acha que o meio acadêmico da física ainda é pouco amigável para as mulheres?
Débora: É um meio muito masculinizado. Tem muito mais homens, e onde há maioria de homens em geral a vida das mulheres não é fácil. Há estudos que mostram que, em ambientes assim, as mulheres enfrentam pressões e barreiras diárias. E algumas se ressentem tanto com isso que abandonam a carreira. Alguns estudos chamam esse fenômeno de leaking pipeline, como se fosse um encanamento que está vazando. E esse vazamento acontece muito, no caso das mulheres.
Do ponto de vista pessoal, diria que senti essas barreiras mais lá atrás, quando era mais jovem. Mas nunca senti nenhuma barreira intelectual. Sei que isso existe, que há professores que diminuem as capacidades das mulheres na física. Acontece ainda hoje, aqui no meu departamento. Mas comigo particularmente não aconteceu. O que eu senti algumas vezes eram piadinhas sem graça, cantadas, coisas de que hoje as meninas reclamam muito. Essas coisas eu procurava desconsiderar, fingia que não ouvia.
Mas quando me tornei Pró-reitora de pesquisa e extensão entre 2008 e 2012, pude perceber com clareza um machismo mais explícito. Senti que vários colegas de departamento se ressentiram. Eles passaram a ter um comportamento de confronto comigo. Ou agiam como se eu fosse uma pessoa supermandona, que quisesse interferir na vida deles. Isso não havia antes.
A ciência brasileira enfrenta um cenário de crise há muitos anos. Como é que você enxerga o panorama para quem trabalha com física hoje?
Débora: Vivemos uma situação de oscilação no financiamento o tempo todo. Isso há décadas. Às vezes temos dinheiro. De repente, esse dinheiro desaparece. Aí volta a ter dinheiro, depois desaparece…Há uma conjunção de fatores muito desfavorável. Tanto na captação de recursos dos órgãos de fomento, quanto na manutenção de estudantes de mestrado e doutorado.
O estudante que cursa mestrado ou doutorado, principalmente aquele que trabalha com física, não tem condições de exercer outras atividades devido à dedicação. E o salário é baixíssimo, depois não vem, depois acaba… E ele conclui o doutorado e depois não acha emprego. Tudo isso é muito desmotivador. O Brasil investe — investe mal, mas investe — em formar pessoas qualificadas, porque eu diria que os nossos programas de pós-graduação são bons. E quando a pessoa está prontinha, e podia começar a contribuir para a ciência brasileira, vai embora para a Alemanha, para os Estados Unidos… Esses países, que já são ricos e que não gastaram um centavo na formação dessas pessoas ganham um doutor pronto pra começar a produzir. E não vemos empresas brasileiras contratando doutores pra fazer pesquisa. Com exceção da área de TI, não vemos a indústria em geral contratando doutores pra fazer inovação nas indústrias. Querem comprar tudo pronto, importar tudo. Há um quadro de desenvolvimento que é frágil no Brasil. Espero que melhore.
O cientista brasileiro é antes de tudo um forte, porque para fazer ciência de qualidade ele luta. Em geral, trabalha na academia, o que significa que fazer mais um monte de outras coisas além da pesquisa: dar várias aulas, orientar, cuidar de parte de administração da universidade. E fazer até prestação de contas de projetos. É um cenário que não é muito animador. E nesse momento, é particularmente mais desanimador, porque vem junto com um discurso de negação da ciência, um discurso de desqualificação das pessoas que são as mais qualificadas do país. É por isso que tem muita gente que desiste, vai embora. Vejo com um pouco de desânimo a situação brasileira. E fazer ciência é uma coisa muito incrível. É uma vida muito boa, é até difícil de descrever para quem não está no meio.
Você participa como tesoureira da diretoria cujo mandato se encerra este mês. Como avalia a atuação da SBF neste contexto de crise, principalmente no que diz respeito à luta pelo financiamento a ciência no Brasil?
Débora: Não é função da instituição pedir financiamento. A função da instituição é apoiar para que esses financiamentos estejam disponíveis para os pesquisadores, e ela tem se engajado na luta. Ela fez uma parceria muito grande com a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) na luta pela liberação dos recursos do FNDCT, ao longo do ano passado e nesse ano. Depois, a SBF também se envolveu na discussão sobre a escolha da nova presidente da Capes. Foi a primeira a lançar uma nota sobre esse assunto, que repercutiu no país todo. A SBF se posiciona. Agora, para que a diretoria ou o presidente se posicionem, o conselho da SBF tem que, de alguma forma, estar de acordo. E aí são muitas pessoas envolvidas. Às vezes, esse posicionamento não é muito rápido. Mas acho que a SBF se manifesta quando deve se manifestar.
O que sinto falta, e que vou tentar mudar um pouquinho, é a comunicação. Acho que a SBF se baseia numa forma de comunicação que é um pouco arcaica. Ela espera que as pessoas abram seus e-mails para verem os informes, ou que entrem no site para saber o que está acontecendo. E hoje em dia, com as mídias sociais, as informações chegam às pessoas; elas não precisam ir atrás. Recentemente, eu e o professor Rogério (Rosenfeld, atual presidente da SBF) submetemos um questionário a alguns participantes do Simpósio Nacional de Ensino de Física. Nós relatávamos o que a SBF tem feito, e perguntamos como ela pode se aproximar mais dos professores do ensino médio. Muitas respostas eram no sentido de “puxa, eu não sabia que a SBF fazia isso”. Eu fiquei espantada; se não sabiam, é porque a informação não chegou a eles. Vamos trabalhar para melhorar essa comunicação.
Você tem atuado também no campo do combate ao negacionismo e às pseudociências. Você acha que esses dois fenômenos estão crescendo no Brasil, ou simplesmente estão se tornando mais visíveis?
Débora: Acho que o quadro não é claro e não tem uma causa única. São muitas. O brasileiro, de modo geral, é um analfabeto científico. Se você pegar pessoas formadas e perguntar por que o céu é azul, garanto que uma parcela expressiva não vai saber dizer. Essa falta de letramento científico está ligada a um déficit educacional que vem lá do ensino mais básico. Falta incutir nas nossas crianças a importância da ciência. Por outro lado, acontece um boicote à curiosidade. As crianças são naturalmente curiosas. Se elas perdem essa curiosidade, é porque o sistema educacional está fazendo coisa errada. E a primeira característica de um cientista é a curiosidade.
Eu vou ministrar um curso na próxima reunião da SBPC sobre metodologia cientifica, fake news, negacionismo, e divulgação científica. Na preparação para este curso, fui buscar quais eram os podcasts mais ouvidos no Brasil e descobri que um dos mais populares é um que fala de horóscopo. E horóscopo é uma enganação tresloucada, baseada num monte de inverdades. Eu até fiz no meu canal no youtube uma série “astrologia versus astronomia” para explicar por que que o horóscopo é uma pseudociência. E uma coisa engraçadíssima são os comentários. Tem gente que diz: “ô, sua louca, vai estudar, vai fazer seu mapa astral”. Eu dou risada. Eu estudei a vida inteira, e você está me mandando estudar por que eu estou dizendo que o horóscopo é uma bobagem? O fato de que o podcast nacional mais requisitado fala de horóscopo já mostra como essa falta de letramento científico é disseminada.
Outro ponto é que, sem dúvida, as redes sociais deram voz a essas pseudociências, e há coisas que se retroalimentam naturalmente. Mas também há muita coisa plantada. Muita história que é inventada propositalmente. Eu diria que existem interesses econômicos ou, como alguns filósofos dizem, uma irresponsabilidade organizada. É o acho que aconteceu no caso da cloroquina, por exemplo. E talvez no caso das vacinas também, o que é lamentável. Mas você vê que existe ali uma força econômica por trás, para enganar deliberadamente a população. E essa população se deixa enganar porque as pessoas não sabem separar o joio do trigo. E, por fim, um terceiro ponto que colabora para esse panorama é o fato de que a comunicação dos cientistas com a sociedade não é das melhores. Ela pode melhorar.
Eu disse antes que gostaria de melhorar a comunicação da SBF com os seus sócios e com a sociedade. Mas isso é uma coisa geral. Essa falta de comunicação está presente. E eu não acho que todos os cientistas deveriam sair por aí gastando uma parte do seu dia fazendo divulgação científica. Não dá tempo para todo mundo fazer isso. E as pessoas fazem bem feito aquilo que elas gostam de fazer. Mas eu acho que todos os cientistas devem apoiar aquelas pessoas que se envolvem com divulgação científica e isso ainda não é valorizado no Brasil como deveria ser.
Crédito da foto acima: UFSC