Arar dores para semear esperanças

Resta a esperança de que, inspirados nos coletivos femininos, nos movimentos negros e em suas lutas, possamos reverter imensos retrocessos

Acabei de ler ”Torto Arado”, romance de Itamar Vieira Junior, tendo sido uma das mais de 100 mil pessoas que já o fizeram. Sem dúvida, pode ser considerado um fenômeno literário no Brasil, já que uma vendagem dessa grandeza raramente ocorre em nosso país.

Em suas 262 páginas, o autor nos remete a um Brasil interiorano, rural, profundo e desconhecido para muitos desses milhares de leitores. Personagens marcantes, muito bem construídas, em um enredo instigante.

As mulheres, figuras centrais na trama, são fortes e expõem, mais uma vez, a enorme luta para se verem reconhecidas, terem sua voz e desejos respeitados, não sendo apenas máquinas e peças de reposição, disponíveis para o prazer masculino, o trabalho extenuante  e a geração de filhos.

Em meu universo de leitor, Donana, Salu, Belonísia e Bibiana são tão marcantes quantos o foram Ana Terra, Maria Valéria e Bibiana, personagens de Erico Veríssimo em “O Tempo e o Vento”. Curiosamente, o mesmo nome se repete nas duas obras: Bibiana. Que a luta dessas mulheres nos seja inspiradora nessa batalha pela igualdade de direitos!

País ‘cordato’

A questão do racismo também joga um papel central na trama. Racismo que parcelas significativas de nossa população ainda tendem a negar, como se vivêssemos em um país “cordato”, exemplo para o mundo. Quando criança era muito comum ouvir dos adultos, ao comentarem os protestos que frequentemente ocorriam contra o racismo nos Estados Unidos: “ainda bem que estamos no Brasil, aqui eles não acontecem, pois não temos esse problema”

Esse sentimento perpassa gerações, mas a pandemia foi didática, cirúrgica e escancarou, mais uma vez, o racismo estrutural que tentamos negar ou varrer para debaixo do tapete. Apenas dois exemplos: uma análise de duas advogadas negras, publicada ainda no início da pandemia, e uma reportagem recente baseada em um estudo que dimensionou, com um recorte racial, o impacto mortífero da Covid-19 na sociedade.

Ao racismo, Itamar associa a questão da utilização da terra e o medo de perdê-la, não mais poder usá-la, pois aos peões da fazenda e suas famílias só era permitido erguer uma tapera, construção de barro, sendo proibidas as de alvenaria. Transitoriedade absoluta, sem nenhuma segurança e perspectiva de vir a ter um espaço próprio, para chamar de seu.

E o medo, sempre o medo…

Era o medo de quem foi arrancado do seu chão. Medo de não resistir à travessia por mar e terra. Medo dos castigos, dos trabalhos, do sol escaldante, dos espíritos daquela gente. Medo de andar, de desagradar, medo de existir. Medo de que não gostassem de você, do que fazia, que não gostassem do seu cheiro, do seu cabelo, de sua cor.

Homens e mulheres explorados, o seu trabalho sendo apenas a garantia da terra para morar, sem salário, sem nada. Essas eram as condições para que os trabalhadores pudessem se instalar em Água Negra, fazenda de propriedade da família Peixoto, que lá raramente aparecia, mas de cujos ganhos rapidamente se apropriava.

Imensos retrocessos

Em torno desses três eixos, mulheres, racismo e trabalho escravo a história se desenvolve, sendo o sincretismo religioso a amálgama que entrelaça personagens e sua sina ao longo da história.

Triste é, ao final do livro, observar que muitas das situações descritas ainda permanecem as mesmas ou pouco avançaram.  Nos últimos anos, lamentavelmente, pautas conservadoras têm ganhado espaço e várias conquistas históricas têm sido solapadas.  Resta-me a esperança de que, inspirados nos coletivos femininos, nos movimentos negros e em suas lutas, possamos reverter esses imensos retrocessos. Que arando nossas dores possamos semear nossas esperanças.

Para finalizar, deixo uma canção celebrando o Dia 1º de Maio, em homenagem a trabalhadoras e trabalhadores. Uma das poucas e maravilhosas parcerias de Milton e Chico

José Paes de Almeida Nogueira Pinto é professor do Departamento de Produção Animal e Medicina Veterinária Preventiva, da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Unesp, câmpus de Botucatu. É assessor da Assessoria de Comunicação e Imprensa da Unesp

Na imagem acima, foto: BrianAJackson/iStock