A concessão pelo Presidente da República, neste 21 de abril, do indulto individual da graça, que tornou nulos os efeitos de uma decisão quase unânime do Supremo Tribunal Federal (STF), tomada no dia anterior, é mais grave do que tem sido apontado, mesmo nas avaliações feitas por estudiosos do Direito. As análises têm se concentrado no aspecto constitucional e menos no jurídico-criminal, que é o ambiente mais específico a que se refere o assunto.
Também em relação ao crime — assim como nas matérias relacionadas à miséria, às deficiências no atendimento à saúde, à falta de moradia ou de acesso à educação, dentre outros problemas socialmente graves — cabe ao Estado (e não o governo), enquanto expressão do interesse público e do Estado Democrático de Direito, adotar um determinado tipo de política pública. É a chamada política criminal, que tem como objetivo impedir a ocorrência de novos crimes, e de responsabilizar, de forma justa, os que foram considerados culpados.
Para alcançar esses fins, várias instâncias, integrantes dos três poderes do Estado, são responsáveis pela gestão da política pública de natureza criminal.
Dentro de suas prerrogativas, o Poder Legislativo define o que deverá ser considerado crime e estabelece os critérios que devem ser observados para a responsabilização criminal do cidadão, bem como para a condenação e imposição da respectiva pena. O Legislativo é, portanto, a instância que se incumbe de delinear esta política criminal, seja por iniciativa própria ou por provocação de outras instâncias, como, por exemplo, proposições vindas do Poder Executivo ou projetos de iniciativa popular, como a Lei da Ficha Limpa. O Legislativo é o único dos três poderes a estabelecer o que é ou não é um crime, uma transgressão imputável da lei penal, por dolo ou culpa.
Os outros poderes ficam encarregados de gerir esta política criminal. Em especial, o Poder Judiciário, ao qual cabe julgar cidadãos transgressores e decidir, à luz do Direito, a punição a ser imposta. Foi neste sentido que o STF, o mais alto nível do Judiciário no Brasil, reconheceu que um deputado federal deveria ser responsabilizado por crimes previstos no Código Penal, impondo a ele um período de prisão e a suspensão dos direitos políticos enquanto durarem os efeitos da condenação criminal.
Cabe ao Supremo julgar casos criminais de deputados federais, que possuem foro privilegiado. Vale salientar que a responsabilização do deputado Daniel Lucio da Silveira e sua condenação, — ou seja, a aplicação da política criminal correspondente ao caso concreto — contou com dez votos favoráveis, entre os 11 ministros do STF.
O Poder Executivo, como os demais poderes, também tem responsabilidade sobre a aplicação da política criminal. Principalmente pela adoção de medidas de segurança pública que assegurem melhores condições para que se possa prevenir a ocorrência dos crimes. Em casos específicos e muito bem determinados, é possível ao Executivo intervir em alguma situação na qual já tenha ocorrido a condenação pelo Judiciário, concedendo ao criminoso o indulto, que é coletivo, ou a graça, que é individual.
Em tese, a concessão do indulto coletivo ou individual pelo Presidente da República está de acordo com a Constituição. Trata-se de um perdão ao criminoso. Ou seja, não se contrapõe ao reconhecimento de que houve uma transgressão à lei penal. Justamente por isso, só pode ser concedido após a conclusão final do julgamento, com o “trânsito em julgado”, depois que foram esgotados os recursos possíveis na Justiça. Este não é o caso da condenação imposta pelo Supremo Tribunal Federal ao deputado federal Daniel Silveira.
Nesse caso, o Presidente da República concedeu a graça antes mesmo do julgamento definitivo do cidadão. Isso leva à conclusão de que a autoridade maior do Poder Executivo já o considerou responsável pelos crimes em questão e antecipou a medida de perdão. Este é um ponto que merece reforço: na forma que a medida foi adotada, o Presidente reconheceu o deputado como culpado antes do trânsito em julgado do processo, única circunstância que lhe permitiria conceder a graça. Só se perdoa alguém que já foi considerado, de forma definitiva, culpado pelo(s) crime(s) de que está sendo acusado.
A graça e o indulto são possíveis, assim, em relação a determinados crimes e em determinadas circunstâncias, bastante específicas. A concessão do indulto ou da graça pelo Presidente da República, ainda que por ato voluntário, jamais pode contrariar a política criminal aplicável ao caso a que se refere, sendo justamente por isso que devem ser observados critérios muito rigorosos para se fazer tal concessão. Por exemplo, critérios relacionados à existência de um evidente interesse público da sociedade brasileira ou por razões humanitárias que poderiam justificar tal medida. Essa ação deveria fortalecer as bases da política criminal previamente estabelecida e não enfraquecê-la.
De forma gravíssima, o presidente Jair Messias Bolsonaro criou e adotou uma política criminal própria e a aplicou ao caso do deputado federal, que está alinhado ao seu grupo político, divergindo do que foi considerado pelo poder competente, o Judiciário, como sendo a política pública criminal aplicável ao caso concreto. A gravidade do ato está não somente nas questões de natureza formal, no sentido de ter ocorrido evidente usurpação de poderes. Está, principalmente, na expressão de uma medida que contraria uma opção de natureza democrática do que se deve considerar como política criminal em casos desta natureza.
Não se trata aqui de uma defesa institucional do Supremo Tribunal Federal, ou da decisão colegiada dos seus ministros, e sim de constatar que têm razão aqueles que projetam que o perdão concedido pelo Presidente da República legitimaria medidas futuras semelhantes, isto é, novos perdões a criminosos, desta ou de outras naturezas. Além, obviamente, de abrir caminho para atos que atentem contra a democracia, como os praticados pelo deputado ora julgado, ou até outros mais graves, principalmente por iniciativa dos seguidores do Presidente. No caso em questão, a política em matéria criminal foi transformada e utilizada como política partidária, com graves consequências se não forem sustados seus efeitos e suas consequências.
Fernando Andrade Fernandes é doutor em Direito pela Universidade de Coimbra e professor da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Unesp, Câmpus de Franca.
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Foto acima: reunião plenária do STF. Crédito: Nelson Jr./SCO/SFT