É na pequenez das sementes que residem as grandes árvores das florestas de amanhã. E, no caso das árvores mais grandiosas dentre todas – aquelas que compõem as florestas tropicais, como a Amazônica –, este futuro também depende dos animais. Nestes biomas, até 90% das espécies vegetais necessitam das interações com animais para completar seu ciclo de vida. No caso da maior floresta tropical do planeta, a lista de espécies que se alimentam dos seus frutos carnosos inclui de aves a primatas e morcegos, o que torna essas relações ecológicas absolutamente fundamentais para a preservação do bioma.
Estas relações são objeto de estudos atentos por parte dos ecologistas. Mas, no caso da Amazônia, outros importantes fenômenos, como as queimadas constantes e a retirada massiva de árvores, têm ocorrido de forma crescente desde os anos 1990. Estas mudanças tornam mais complexo o quadro da interação entre as espécies, obrigando os estudiosos a mergulharem em pesquisas minuciosas para entender o que, de fato, está ocorrendo no dia a dia da serrapilheira amazônica.
A bióloga Liana Chesini Rossi dedicou sua pesquisa de doutorado, cursado no Programa de Ecologia e Biodiversidade do Instituto de Biociências da Unesp, Câmpus de Rio Claro, para investigar até que ponto a frequência maior de queimadas e a extração de madeira estão impactando as interações de frugivoria (nas quais animais se alimentam de frutos das plantas e depois dispersam as sementes em suas fezes) na Amazônia. Rossi atualmente é pós-doutoranda no Jardim Botânico do Rio de Janeiro, e os resultados do estudo foram divulgados em um artigo publicado na revista Oikos.
“É a primeira vez que um estudo produz uma avaliação tão abrangente no campo das interações ecológicas — no caso, frugivoria — para a Amazônia”, explica Rossi. “E é pioneiro em examinar os efeitos, em um prazo mais longo, do fogo sobre essas interações em florestas tropicais”, diz. A pesquisa também está inserida no Programa de Monitoramento Ecológico de Longa Duração do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), no âmbito do projeto coordenado pela Rede Amazônia Sustentável.
Esperava-se, diz ela, que o estudo constatasse a ocorrência de impactos negativos sobre a biodiversidade em áreas que foram incendiadas ou onde ocorreu alguma extração de madeira. A gravidade dos dados finais, porém, superou as expectativas. “O estudo mostra que, mesmo passados 20 anos, as interações observadas ainda são simplificadas. Envolvem menos espécies, e elas interagem menos entre si”, explica. “Isso é preocupante, porque essas interações são fundamentais para a regeneração e a consequente manutenção da floresta.”
A investigação abrangeu mais de 1.500 horas de observações focais, além de 30 mil horas de monitoramento por armadilhas fotográficas situadas na região da Amazônia brasileira (veja abaixo vídeos capturados nas armadilhas fotográficas).
Nas áreas impactadas há quase 20 anos, constatou-se, em média, uma redução de 16% nas espécies de frugívoros e um declínio de 66% no número de interações de frugivoria. As mudanças na composição da fauna incluem até o desaparecimento de diferentes espécies, como o pássaro cujubi (Aburria cujubi), o primata coatá-de-testa-branca (Ateles marginatus) e a anta (Tapirus terrestris), fato que chamou a atenção dos cientistas.
O foco da pesquisa recaiu sobre quatro classes de floresta: intacta, explorada, explorada e queimada há 17 anos (queimada 17 anos antes da amostragem) e explorada e queimada há 3 anos (contados antes da amostragem). As florestas intactas sustentaram um número significativamente maior de espécies e interações em comparação com as florestas exploradas e queimadas há 17 anos, e resultaram em números semelhantes às florestas apenas exploradas ou exploradas e queimadas há 3 anos (veja arte abaixo).

O esforço de campo da equipe de investigação resultou em um conjunto de dados bastante robusto. No total, foram registradas 4.670interaçõesdefrugivoria, envolvendo 991 associações únicas entre 165 espécies de plantas e 174 espécies frugívoras. A grande maioria das relações ecológicas (86%) se dá em ambiente arbóreo, enquanto apenas 14% foram observadas no solo. Do total de frugívoros, 146 foram identificados como espécies de aves, responsáveis por 3.665 interações (78,5%), enquanto 28 eram espécies de mamíferos, que realizaram 1.005 interações (21,5%).
Do lado vegetal, as espécies mais frequentemente envolvidas em interações com frugívoros foram Coussapoa tessmannii (Urticaceae, 9,7%), seguida por Ficus morfotipo 1 (Moraceae, 8,7%), Brosimum acutifolium (Moraceae, 7,1%) e Miconia pyrifolia (Melastomataceae, 5,3%). Os animais frugívoros mais observados incluíram três espécies de aves: Ceratopipra rubrocapilla (cabeça-vermelha, 8,9%), Ramphastos vitellinus (tucano-de-bico-canal, 5,1%), Ramphastos tucanus (tucano-de-peito-branco, 3,9%) e Pteroglossus bitorquatus (aracari-de-pescoço-vermelho, 3,9%), além de um mamífero, Dasyprocta leporina (cutia-de-rabo-vermelho, 4,3%).
“Além de empobrecer a biodiversidade nas florestas que foram queimadas, a ausência dessas espécies também priva algumas plantas de seus principais dispersores de sementes”, diz o biólogo Marco Aurélio Pizo, investigador principal do estudo e professor do Instituto de Biociências da Unesp de Rio Claro. “Isso pode comprometer a estrutura e a continuidade das populações vegetais a longo prazo.”
Segundo Rossi, apesar de os processos de enfraquecimento ecológico da Amazônia serem familiares aos grupos que estudam a região, alguns dados se mostraram surpreendentes.
“Esperávamos encontrar um forte empobrecimento nas redes de frugivoria naquelas florestas que sofreram queimadas recentes, com um menor número de espécies e menos interações. Isso, no entanto, não se confirmou de forma tão clara quanto imaginávamos”, diz ela. “Porém, observamos mudanças significativas na composição das espécies que habitavam as áreas estudadas e no tipo de interações envolvidas, em especial naquelas áreas que passaram por corte seletivo e queimadas mais recentes.”
Essa percepção sugere que, embora o número total de interações possa parecer semelhante, a identidade das espécies envolvidas e o modo como elas interagem já estejam mudando, o que pode acarretar consequências importantes para o funcionamento ecológico dessas florestas.
Qual o futuro da floresta?
Qualidade, além de quantidade, é fundamental quando se analisa a ecologia das florestas. É por isso que, no caso específico do ambiente amazônico, uma tese apresentada ao mundo nos anos 1990 pelo cientista Carlos Nobre continua sendo evocada, tanto nos meios de comunicação quanto nos congressos e artigos científicos. Esta tese apresentava a possibilidade de que o desmatamento excessivo pudesse comprometer a capacidade da floresta amazônica em regenerar e recompor sua vegetação, alcançando um ponto de não retorno que comprometeria a continuidade do bioma da forma como o conhecemos hoje.
Desde então, a combinação de mudanças climáticas globais e ações antrópicas vem se articulando em uma sinergia cada vez mais robusta a favor da transformação definitiva da floresta e de uma caminhada para o temido ponto de não retorno. O novo estudo permite trazer mais elementos para esse debate, apresentando uma conexão importante e preocupante com a noção do ponto de não retorno, ao revelar que, ainda que a estrutura geral das redes de interações se mantenha, a perda de espécies e de interações pode indicar um empobrecimento funcional dessas florestas. “Embora nosso trabalho não tenha como foco direto os chamados tipping points, os pontos de não retorno, os resultados sugerem que essas florestas podem estar se tornando mais sensíveis a novos distúrbios”, diz Rossi.
A desconexão que ocorre, portanto, entre as plantas e as espécies animais que se alimentam de seus frutos ajuda a fomentar um dos pilares centrais do conceito do ponto de não retorno. Se os níveis de desmatamento e degradação da Amazônia atingirem certos patamares, mostram vários estudos sobre o tema, a floresta perderá a capacidade de se sustentar, independentemente de quaisquer iniciativas posteriores no sentido de mitigar a perda de cobertura vegetal.
Essa degradação ecológica poderia empobrecer a biodiversidade em vastas áreas da floresta tropical, o que traria implicações devastadoras não apenas para a região, mas também para o clima global. Para esboçar um quadro do aspecto que teria essa Amazônia sem a floresta, algumas pessoas recorrem ao termo savana. Mas não é uma descrição lá muito precisa: uma Amazônia sem floresta se mostraria muito mais pobre, tanto em termos de fauna quanto de flora, do que uma savana.
Seca e calor preocupam
Outras descobertas recentes fundamentam a preocupação com a possibilidade de que o ponto de não retorno esteja se aproximando. Uma delas é a constatação de que, nos últimos anos, vem se ampliando a duração da estação seca no sul da Amazônia. É nesta região que está situada boa parte do chamado Arco do Desmatamento, termo cunhado para delimitar um vasto segmento do bioma amazônico onde a devastação avança em ritmo acelerado há décadas.
Carlos Nobre, um dos maiores climatologistas brasileiros, e que se dedica a estudar a resiliência amazônica há 30 anos, prevê um futuro complicado caso a tendência se mantenha. “Atualmente, a estação seca em algumas regiões da Amazônia aumentou em até cinco semanas. Se esse prolongamento continuar, a floresta não sobreviverá a secas que durem mais de seis meses”, diz ele.

Os dados científicos recentes, gerados a partir de pesquisas conduzidas em diversas áreas do bioma, delineiam um cenário ainda mais perigoso, porque a combinação de desmatamento e aquecimento global exacerba os problemas.
Até hoje, por volta de 18% da área da floresta já foram devastados por completo. Quando se somam também os terrenos degradados, chega-se ao percentual de 20% da área do bioma com alterações. Estudos multidisciplinares mostram que, se o desmatamento alcançar 25% da área e o aquecimento global ultrapassar a média global em 2 °C, grande parte da floresta entrará em um ciclo de autodestruição. Se tais condições se concretizarem, as projeções apontam que o ponto de não retorno será alcançado em 25 anos.
As pesquisas sugerem que os efeitos extremamente danosos não se restringirão apenas à Amazônia: devem espalhar-se por toda a América do Sul, como um efeito dominó — em especial, por meio da interrupção do fenômeno conhecido como “rios voadores”, os fluxos de vapor d’água que circulam da Amazônia para outras regiões do continente.
A floresta, nas regiões onde ainda está preservada em sua exuberância original, funciona como uma bomba d’água ativa, que exala umidade para a atmosfera. Esses grandes canais aéreos de vapor são responsáveis por levar umidade para o Cerrado e a Mata Atlântica. A área de influência da Amazônia chega ao Sudeste do Brasil e a partes da Argentina, do Paraguai e do Uruguai.
E sem essa umidade do norte do país, os demais biomas do continente se tornarão certamente mais secos, enfrentando estações com prolongada ausência de chuvas e temperaturas mais altas. Essas alterações colocariam sob ameaça não apenas a biodiversidade do país, mas também sua agricultura. Todo o agronegócio brasileiro, concentrado no Cerrado, estaria, portanto, sob risco.
As mudanças climáticas em curso em todo o planeta – e, no caso específico da Amazônia, o efeito antrópico cada vez mais presente – geram sinergias potencialmente maléficas para todo o ecossistema, como sustentam os autores do artigo publicado na Oikos.
“De um lado, encontramos uma alta diversidade de espécies de plantas, espécies frugívoras e suas interações entre todas as áreas de estudo, bem como dentro e entre as classes florestais, principalmente impulsionada pela substituição de espécies. Mas as florestas exploradas e queimadas há 17 anos apresentaram a composição de interações mais distinta em comparação com as florestas intactas. Nosso estudo fornece evidências inéditas de que distúrbios antrópicos, especialmente a extração seletiva de madeira e os incêndios florestais, afetam negativamente as interações de frugivoria nas florestas amazônicas. Esses efeitos podem persistir por anos após os eventos iniciais de distúrbio e podem ser agravados devido ao aumento previsto dos incêndios florestais impulsionado pelas mudanças climáticas”, afirma Rossi.
O fato de algumas das relações entre animais e vegetais analisadas por Rossi e seus colaboradores envolverem espécies ameaçadas de extinção é outro sinal de alerta importante. O estudo flagrou interações, por exemplo, com a Lepidothrix iris (uiraçu-de-coroa-azul), classificada como Vulnerável pela ONG União Internacional para a Conservação da Natureza — que monitora o risco de extinção de espécies —, encontrada em florestas Intactas e Exploradas. Além disso, as espécies Aburria cujubi (jacupiranga, Vulnerável), Penelope pileata (jacuguaçu-de-coroa-branca, Vulnerável) e Ateles marginatus (macaco-aranha-de-cara-branca, Em Perigo) foram observadas em florestas Intactas, Exploradas e Exploradas e queimadas há três anos (IUCN, 2024).
A corrida contra o tempo para que as ações antrópicas contra o meio ambiente não se tornem irreversíveis dentro do contexto amazônico se impõe cada vez mais. “Menos interações resultam em uma diminuição no processo de dispersão de sementes, levando a uma regeneração florestal mais lenta, o que pode aumentar a suscetibilidade da floresta ao fogo e agravar ainda mais a perda de interações. Os dados reforçam que o tempo de recuperação dessas áreas pode ser maior do que se imaginava. Esse cenário é preocupante, especialmente diante das previsões de continuidade ou intensificação de distúrbios recorrentes, como queimadas e extração seletiva de madeira”, diz Rossi.
Imagem acima: área de queimada na floresta amazônica em Rondônia. Crédito: Bruno Kelly/Wikimedia Commons.