Há 12 anos, o samba e a ciência brasileira perdiam um personagem singular: Paulo Vanzolini.
Paulo Emílio Vanzolini nasceu em 25 de abril de 1924, na cidade de São Paulo. Graças a sua personalidade complexa conseguiu, ao longo da vida, alcançar sucesso e reconhecimento nas duas áreas pelas quais era apaixonado: a investigação cientifica e a música popular. Nesta seara, ganhou destaque como o autor de clássicos como Ronda, Volta por Cima, Praça Clóvis e Na Boca da Noite.
No total, deixou mais de 70 canções, que foram interpretadas por uma lista estreladíssima de nomes da música brasileira que inclui Chico Buarque, Alcione, Ângela Maria, Cauby Peixoto, Elis Regina, Maria Bethânia, Nelson Gonçalves, Paulinho da Viola e Inezita Barroso, só para citar alguns. Boêmio assumido, se inspirou em histórias da noite paulistana para compor boa parte das suas músicas.
Na área da ciência, destacou-se como um dos idealizadores da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), da qual redigiu o anteprojeto de criação. Foi um ativo colaborador do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo, instituição que dirigiu por 30 anos. Como pesquisador, seus estudos em conjunto com o geógrafo Aziz Ab’Saber e o norte-americano Ernest Williams revolucionaram a compreensão da evolução dos vertebrados no Brasil.
Nos últimos anos de vida, casado com a cantora Ana Bernardo, já não compunha, mas ainda acompanhava os shows da mulher e frequentava algumas rodas de samba em bares de São Paulo. Ao completar 89 anos, foi internado no Hospital Albert Einstein com pneumonia. Faleceu 3 dias depois, em 28 de abril de 2013, na capital paulista.
O professor e musicólogo Alberto Tsuyoshi Ikeda, docente aposentado da Unesp e consultor da cátedra Kaapora de Diversidade Cultural e Étnica na Sociedade Brasileira, da Universidade Federal de São Paulo, destaca inicialmente a contribuição do zoólogo para a ciência brasileira.
“Paulo Vanzolini é uma grande referência do campo da ciência no Brasil, não só em São Paulo. A gente não fala de uma ciência regional, mas de uma ciência que é nacional e internacional. Ele se formou em medicina, mas nunca exerceu. Logo em seguida, foi fazer o doutorado em Harvard, EUA e se especializou em répteis. E foi um dos fundadores da FAPESP, que desde a sua fundação até agora deu uma imensa contribuição para a ciência produzida no Brasil e na América do Sul”, lembra o musicólogo.
Origem e trajetória
Paulo era descendente de italianos. Menino, cursou o primário no Colégio Rio Branco e o ginásio em escola pública, onde se formou em 1938. Aos dez anos, visitou o Instituto Butantã e lá surgiu sua fascinação pelos répteis e o desejo de estudá-los. Pensou em cursar graduação em zoologia, mas outras influências o levaram a optar pela medicina. Em 1942, ingressou na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Em paralelo, na companhia de seus amigos estudantes, passou a frequentar as rodas boêmias e a compor seus primeiros sambas. Também durante o período do curso passou a lecionar no Colégio Bandeirantes e começou a trabalhar no Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo.
Em 1945, serviu na cavalaria do Exército, e fazia patrulha em regiões de prostituição no centro de São Paulo. Essa vivência lhe rendeu inspiração para compor o samba-canção Ronda, que só seria gravado oito anos mais tarde por Inezita Barroso. Formou-se em medicina em 1947. Casou-se em 1948 com Ilze, com quem teve cinco filhos. No ano seguinte, foi para Boston, nos Estados Unidos. Lá, doutorou-se em zoologia pela Universidade Harvard. Especializou-se em herpetologia, ramo da zoologia que estuda répteis e anfíbios.
No início da década de 1950, por insistência do amigo Geraldo Vidigal, publicou pelo Clube de Poesia o livro “Lira de Paulo Vanzolini”. Em 1959, o violonista José Henrique, dono da boate Zelão, mostrou o samba Volta por Cima ao cantor Noite Ilustrada. Anos depois, em 1963, Noite Ilustrada lançou sua gravação da música, um estrondoso sucesso. Nesse mesmo ano, Paulo Vanzolini foi nomeado diretor do Museu de Zoologia, cargo que exerceu por décadas. Mesmo depois de se aposentar, em 1993, continuou trabalhando na instituição.
Em novembro de 1967, Luís Carlos Paraná, da boate Jogral, e Marcus Pereira, dono de uma agência de publicidade, resolveram produzir um LP chamado Onze Sambas e uma Capoeira com as composições inéditas de Paulo Vanzolini, conhecidas apenas por seus amigos frequentadores das mesmas rodas de samba.
Um compositor diferenciado
Segundo Ikeda, a formação familiar, educacional e acadêmica de Vanzolini foram fundamentais para que ele se firmasse como um compositor de samba diferenciado.
“Como ele mesmo dizia, seu contato inicial com a música foi por meio do rádio, ainda menino. Possivelmente, ouvindo aqueles músicos da década 1930 mais ligados à cultura popular. Ou seja, fez parte da geração que fez sua formação musical pelo rádio, escutando sobretudo artistas, compositores e cantores do Rio de Janeiro, que eram os mais atuantes no universo radiofônico. Mas é claro que também havia referências de São Paulo. Desde o final da década de 1920 a cidade abrigava uma vida cultural rica com espetáculos teatrais, bares noturnos e músicas em determinados restaurantes”, relata.
Ele conta que Vanzolini era muito ligado à literatura, à poesia e a vivências em ambientes culturais, o que é evidenciado pelo seu livro de poesias publicado em 1951. Mas o salto para a composição musical foi um efeito da sua vida boêmia no período de estudante universitário. E ressalta o entrelaçamento de sua trajetória com a construção do samba paulistano.
“Diferentemente de outros músicos, Vanzolini não era um profissional que vivesse da música, como músico, professor, instrumentista, participando de programas de rádio, gravações. Só passou a fazer essas coisas muito depois, quando já era uma referência na música popular, lá pelos anos 1960 e 1970. Ele compunha, mas nunca estudou música. Porém, convivia nesse ambiente, sobretudo quando passou a cursar a faculdade de medicina e a ter uma vida mais noturna. Ele dizia: “eu não sou um compositor, sou um homem da noite”, porque era ali que ele absorvia as coisas e convivia com os músicos”, analisa.
“Tanto é que, se a gente pegar o exemplo da própria canção Ronda, ele está fazendo uma espécie de crônica da noite: a busca amorosa de uma apaixonada que anda pelas noites procurando o seu amado. Ronda corresponderia às chamadas cantigas de amigo, lá da época medieval da Península Ibérica, nas quais existe sempre a figura poética de um homem que fala pela mulher. O poeta compositor é esse sujeito que consegue observar um evento prosaico, algo do cotidiano, e transformar em uma melodia, em uma poesia”, analisa.
A produção artística de Vanzolini se deu em paralelo com a construção e a busca por identidade do samba paulistano, diz Ikeda.
“Na segunda metade da década de 1930 e na década de 40, havia uma efervescência musical do RJ, formada por centenas de grandes nomes reconhecidos na música popular. Em São Paulo, não houve isso. Mas existia uma vida noturna, várias rádios e ambientes onde a música se fazia presente. Por isso, nomes como Paulo Vanzolini e Adoniran Barbosa se firmaram como referências. Nesse cenário de samba podemos inserir também Geraldo Filme, Henricão e Paraguassu (Roque Ricciardi). Inclusive, Vanzolini criticava muitos nomes da música brasileira, dizendo que os mesmos faziam “sambas comerciais”. Na verdade, ele vivia na sombra do show business”, diz o docente.
Legado celebrado
Ainda em vida, Vanzolini foi homenageado pelo carnaval das duas capitais. Em 1985, foi citado no desfile da carioca Mocidade Independente de Padre Miguel, cujo enredo “Ziriguidum 2001, um carnaval nas estrelas” fantasiava sobre um imaginário corso de sambistas ao espaço sideral. Em 1988, foi retratado pela Mocidade Alegre, de São Paulo, que exaltou suas duas facetas, cientista e poeta. Também foi homenageado pela escola de samba paulistana Vai-Vai no ano de 2005 com o enredo “Eu também sou imortal”, que falou do samba e da boemia de São Paulo.
Logo após o seu falecimento, em 29 de abril de 2013, a escola de samba paulistana Mocidade Alegre anunciou seu enredo de 2014, tendo como tema os 90 anos do boêmio paulista. E, em dezembro de 2022, foram realizadas reformas no cruzamento da Avenida Ipiranga e a São João que incluíram a colocação de estátuas em homenagem aos representantes máximos do samba paulista: Adoniran Barbosa e Paulo Vanzolini.
Confira abaixo a entrevista completa no Podcast MPB Unesp.