A cantora carioca Elza Soares (1930 – 2022) foi uma das mais longevas e mais celebradas artistas brasileiras. Sua carreira de muito sucesso, iniciada nos anos 1950, abrangeu sete décadas e foi marcada por diversos sucessos, tanto de público quanto de crítica. No século 21, já consagrada como um importante nome do samba e da MPB, Elza deu uma virada estética e abriu espaço para flertar com a música eletrônica e com arranjos experimentais. Essa guinada lhe valeu cinco indicações ao Grammy, que finalmente a premiou, em 2016, pelo álbum A Mulher do Fim do Mundo.
Entre as joias que gravou em sua carreira está uma parceria com o também carioca Wilson das Neves (1936 – 2017). Wilson foi outro destacado músico, cujo talento ficou registrado em mais de 800 gravações, acompanhando todo tipo de artista. Suas baquetas precisas marcaram o tempo em shows de gigantes como Elis Regina, Chico Buarque e Roberto Carlos. Em paralelo, ele construiu uma carreira solo elogiada, cujo primeiro lançamento foi, justamente, Elza Soares – Baterista: Wilson das Neves, de 1968.

Agora, o encontro dessas duas lendas da música brasileira vai ganhar uma noite de celebração. A cantora, compositora e atriz carioca Thalma de Freitas e o músico, baterista e produtor Vitor Cabral revisitam o álbum de Elza Soares e Wilson das Neves no próximo sábado, 9 de novembro. A dupla vai se apresentar no palco do Sesc Belenzinho, em São Paulo.
O repertório do álbum explorou o sambalanço, gênero popular nos anos 1960. Embora Elza já fosse uma celebridade (o disco era o décimo de sua carreira), ela fez questão de colocar a bateria e a percussão em primeiro plano e de apresentar Wilson das Neves como artista principal ao seu lado, em vez de apenas identificá-lo como músico acompanhante. Mas a obra também projetava outros significados, ao apontar um posicionamento artístico transgressor e afrodiaspórico, que acompanharia a carreira deles até o fim.
Thalma de Freitas é cantora e atriz. Seu rosto ficou conhecido na telinha após participações em telenovelas como Laços de Família e O Clone, mas ela também se aventurou no cinema, em produções como O Xangô de Baker Street e As Filhas do Vento – esta última lhe valeu o prêmio de Melhor Atriz Coadjuvante no Festival de Gramado.
Filha do maestro, pianista e compositor Laércio de Freitas, Thalma vem construindo, em paralelo, sua carreira musical. Seu primeiro álbum, Thalma, saiu em 1996 pela Sony Music. Desde então, gravou mais três trabalhos. O mais recente, Sorte!, de 2019, desenvolvido em parceria com o norte-americano John Finbury, recebeu uma indicação ao Grammy de Melhor Álbum de Jazz Latino. Thalma trabalhou muitos anos ao lado de Wilson das Neves, junto à Orquestra Imperial, grupo carioca que fez muito sucesso nas primeiras décadas do século 21.
Vitor Cabral também trabalhou com Wilson das Neves e Elza Soares, além de diversos outros grandes nomes da MPB. A lista de artistas que já acompanhou, ou acompanha, inclui Gal Costa, Simone, Adriana Calcanhotto, Mano Brown, Criolo, Marcelo Camelo, Laércio de Freitas e muitos outros.
Thalma conta que a ideia do show veio de Vítor. “Nós dois tivemos a honra de ser amigos do Wilson das Neves. Ele foi um dos melhores bateristas do mundo, e um dos grandes do Brasil. Tinha uma identidade sonora maravilhosa, que contemplava nosso compromisso com o samba jazz, com o jazz brasileiro e possuía uma identidade forte”, explica.
Vítor e Thalma também colaboram em outros projetos, incluindo o show dela Serendipidades e também o Gira de SambaJazz, que ocorre mensalmente na Casa de Francisca.
“O Vítor tinha esse desejo há tempos. Confesso que dei uma segurada. Pensava: as pessoas mal sabem o que eu faço. Se chegasse cantando Elza Soares, iriam achar que quero imitar a Elza. Como explicar que não quero imitar? Que é uma homenagem? Que, na verdade, faço parte dessa cena, mas também sou autora? Mas o Vítor me encorajou e o som está muito bonito”, explica.
O disco ficou célebre por seus arranjos diferenciados e muito dançantes, com a bateria em destaque. O repertório trouxe as composições Balanço Zona Sul (Tito Madi, 1963), Deixa Isso Pra Lá (Edson Menezes e Alberto Paz, 1964), Garota de Ipanema (Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes, 1962), Mulata Assanhada (Ataulfo Alves, 1956), Palhaçada (Luis Reis e Haroldo Barbosa, 1961) e Samba de Verão (Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle, 1964), para citar algumas.
Vítor destaca a sonoridade rara que ficou registrada no vinil de 1968. “Esse álbum sempre esteve no meu inconsciente, escuto desde a adolescência. Wilson das Neves foi o primeiro baterista brasileiro a quem me afeiçoei perdidamente. Costumo dizer que ele é o Santo Graal, a ponte entre o que estava do outro lado do oceano, e veio com a diáspora africana, e o que se desenvolveu aqui. Ele tem uma conexão muito forte com o samba urbano, com o terreiro. Sua abordagem trata a bateria como uma extensão da percussão, mas sem cair na caricatura”, explica.
Vítor diz que ele e Thalma desenvolveram o projeto sob uma perspectiva de “conservação do patrimônio musical brasileiro”. “O Brasil é um país que tem dificuldade de ter memória. Pensando na percussão e na bateria como elementos que são a coluna dorsal da construção dos gêneros populares, Wilson das Neves está no hall da fama”, diz. “E a Elza também. Porque ela tinha uma abordagem com consciência dessa africanidade diaspórica, de pegar o ritmo e a palavra de um jeito muito próprio dela. Não é à toa que ela fez esse disco, o único que conheço a introduzir um baterista. É como se ela dissesse: ‘esse artista está começando a carreira solo dele’. Nunca vi isso, nem aqui, nem nos Estados Unidos, nem em lugar nenhum”, explica.
E Thalma ressalta o quanto o disco estava à frente da época em que foi lançado. “O diferencial deste trabalho é, justamente, a Elza ter trazido Wilson das Neves para o primeiro plano. Ela abraçou a sonoridade que o Wilson estava querendo trazer no seu trabalho enquanto artista solo. O fato de ela aceitar fazer Elza apresenta Wilson das Neves, e de o disco ter uma identidade de samba jazz muito tradicional, era algo muito moderno para aquela época”, conta a cantora.
“Revisitar esse disco traz à tona uma questão pouco discutida: o quanto a bateria e a percussão vêm sendo negligenciadas na história da música popular brasileira, mesmo formando o eixo principal no desenvolvimento de todos os gêneros populares do país. Elza sabia disso. Sua obra é uma reverência a essa instituição afrodiaspórica”, arremata Thalma.
Confira abaixo a entrevista completa no Podcast MPB Unesp
Imagem acima: divulgação.
