Presidente da China aproveitou cúpula com líderes da Ásia e da Rússia e desfile militar comemorativo para transmitir mensagens ao mundo

Especialista em economia e política internacional analisa defesa da ordem multipolar apresentada por Xi Jinping em encontro do qual participaram Vladmir Putin e Narendra Modi semana passada. Parada comemorativa realizada dois dias permitiu que potência asiática apresentasse arsenal de alta tecnologia e reivindicasse status de ator geopolítico de primeira linha, capaz de sustentar suas posições.

A China esteve no centro do noticiário internacional semana passada. Em apenas quatro dias, o país sediou dois importantíssimos eventos, deliberadamente planejados para capturar a atenção do planeta. Nos dias 31/08 e 1/9, a cidade de Tianjin sediou o encontro da Organização de Cooperação de Shangai (OCS). Xi Jinping, o presidente chinês, recebeu os líderes nacionais da Rússia, Vladimir Putin, e da Índia, Narendra Modi, além de representantes de mais de 20 países. Na quarta-feira, 3/9, na presença novamente de Putin, e do líder da Coreia do Norte, Kim Jong-Um, Xi Jinping presidiu um imenso desfile militar e discursou na Praça da Paz Celestial, em Pequim. O desfile comemorou os 80 anos da vitória da China e da derrota do Japão no fim da Segunda Guerra Mundial, e, em especial, expôs o crescente poderio bélico chinês, buscando reafirmar sua capacidade de exercer influência geopolítica.

A OCS, com sede em Pequim, foi fundada pela China, Rússia, Cazaquistão, Quirguistão, Tajiquistão e Uzbequistão, há mais de duas décadas como um bloco de segurança regional, com o intuito de fortalecer e garantir a segurança da região do globo que encobre Ásia, Ásia Central e Eurásia. A Índia uniu-se ao bloco em 2017.

Na cúpula, sediada na cidade de Tianjin, Xi Jinping apresentou sua visão para uma nova ordem econômica e de segurança que prioriza o Sul Global. Criticou de forma velada os Estados Unidos prometendo se opor ao “hegemonismo” e às “práticas de intimidação”, e defendendo o multilateralismo, as Nações Unidas e a Organização Mundial do Comércio. O líder chinês propôs ainda a criação de um Banco de Desenvolvimento da OCS. O presidente da Rússia, Vladimir Putin, cujo país estreitou laços econômicos e de segurança com a China em meio às consequências da guerra na Ucrânia, disse que a OCS revive o “multilateralismo genuíno”, com moedas nacionais cada vez mais usadas em acordos mútuos.

Marcos Cordeiro Pires, especialista em economia e política internacional do câmpus da Unesp em Marília e vice-coordenador do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP), explica quais os objetivos da liderança chinesa ao promover dois eventos tão ambiciosos e significativos na mesma semana.

Ele explica que a Organização de Cooperação de Shangai foi criada em 2001 dentro de um contexto muito específico. Após os ataques às Torres Gêmeas, vivia-se uma grande insurgência dos grupos muçulmanos sunitas na região da Ásia Central. A nova organização foi concebida para agrupar as nações que se sentiam ameaçadas por aqueles grupos, e que queriam organizar ações comuns para combater ou prevenir movimentos de insurgência. Com o tempo, o arranjo evoluiu para fomentar cooperação e desenvolvimento entre os países.

“Nessa reunião do grupo houve uma novidade, que foi visita do Modi”, diz Cordeiro. “Ela ocorreu depois que Donald Trump impôs tarifas de 50% para a Índia, para puni-la por adquirir petróleo russo. Modi é de um partido nacionalista, mais próximo ideologicamente ao Donald Trump. Ele se sentiu traído pelas medidas de Trump. Respondeu buscando reforçar os laços com os países dos BRICS e, principalmente, com a Rússia. Sua ida ao encontro foi uma oportunidade para que estes países declarassem que os Estados Unidos não são um país imprescindível, e que há  opções a ele. E a China também está sendo alvo de diversas sanções dos Estados Unidos, principalmente no segmento de alta tecnologia”, diz.

Líder defendeu ordem multilateral internacional

Durante o encontro, Xi Jinping apresentou a proposta denominada Iniciativa Global de Governança. O objetivo, explica Cordeiro, é assegurar a continuidade da ordem internacional  segundo os valores que estão estipulados pela Organização das Nações Unidas. “A Iniciativa Global de Governança se junta a outras quatro iniciativas chinesas de ordem internacional: a iniciativa da Nova Rota da Seda, a iniciativa de Civilização Global, a Iniciativa de Desenvolvimento Global e a Iniciativa de Segurança Global. Todas essas iniciativas têm por objetivo confrontar o unilateralismo americano e reafirmar aquilo que está na Carta da ONU”, diz.

É importante lembrar que a própria ONU foi criada por iniciativa dos EUA, em 1945, para evitar a emergência de novos conflitos mundiais e promover o direito internacional no lugar do simples enfrentamento militar. Ao mesmo tempo, em sua agenda diplomática nacional, os EUA buscavam disseminar valores como defesa dos direitos humanos, soberania, livre comércio e um sistema monetário global baseado no dólar. E são os próprios americanos que agora estão lentamente sabotando esta arquitetura.

“Os EUA estão utilizando o dólar como arma comercial, paralisando o funcionamento pleno da OMC, ameaçando a Venezuela de intervenção militar e o Canadá de anexação. Essa discussão sobre a governança global que Xi Jinping propôs na semana passada ofereceu um contraponto a estas ações, em defesa de uma ordem internacional multilateral”, analisa o historiador. “Isso mostra que está havendo uma reorganização da ordem internacional, com uma perspectiva a partir do chamado Sul global”, diz.

Desfile trouxe mensagens

O desfile militar ocorreu no dia 3/9 e causou comoção pela tecnologia militar avançada que desfilou pelas ruas e os céus da capital chinesa. Foram exibidos misseis hipersônicos, mísseis nucleares,  drones marítimos, aviões de interceptação, aeronaves de telecomunicações, de reabastecimento, bombardeiros de longa distância etc.

“O desfile marcou o octogésimo aniversário da vitória da China e da rendição do Japão na Segunda Guerra Mundial, e a derrota do nazifascismo”, diz Cordeiro. “Essas duas questões foram bastante relacionadas durante a narração do desfile. Esse é um aspecto importante. Hoje, vemos a ascensão de forças de extrema-direita mas, por mais que elas busquem reescrever a história, vão se deparar  com um país como a China, que vai se opor a esse tipo de tirania”, analisa. “O desfile disse o seguinte: veja minha evolução tecnológica e compreenda que sou um país que quer ser tratado como igual no mundo, com respeito, e não como subalterno.”

Cordeiro avalia que o emprenho da China na defesa de uma nova formulação da ordem internacional, favorecendo uma perspectiva multipolar, é favorável aos interesses do Brasil. “O Brasil é um país que deve apostar sempre na diplomacia, no diálogo, nas organizações multilaterais. Não é um país que disponha de armas nucleares ou de um exército para projetar poder, ou uma moeda de aceitação internacional. Sua posição na ordem internacional deve estar ao lado das políticas que reforcem o multilateralismo, que reforcem a ordem internacional baseada em regras e na resolução pacífica de conflitos. A reafirmação do respeito às leis internacionais, a defesa do multilateralismo e do livre comércio são pautas que estão diretamente relacionadas com o interesse brasileiro”, diz.

Veja abaixo a íntegra da entrevista de Marcos Cordeiro ao Podcast Unesp.

Imagem acima: o presidente da China, Xi Jiping, discursa na Praça da Paz Celestial, em Pequim. Crédito: Agência Xin Hua.