Há cerca de setenta anos, em 5/08/55, o Brasil perdia sua “pequena notável”: a cantora Carmen Miranda deixava a vida para habitar, definitivamente, o nosso olimpo musical, imortalizada por interpretações que se tornaram clássicos do cancioneiro nacional, como O que é que a baiana tem?, Mamãe Eu Quero, South American Way e Tico-Tico no Fubá. Além de cantora, Carmem destacou-se como atriz e dançarina, sendo a primeira mulher a assinar contrato com uma rádio no Brasil. Seu estilo único conquistou outras nações e levou-a a residir nos Estados Unidos. Lá, foi a primeira sul-americana com uma estrela na Calçada da Fama, e chegou a ser a atriz mais bem paga de Hollywood.
Embora tenha se tornado um ícone internacional da mulher latino-americana, Carmen Miranda, aliás, Maria do Carmo Miranda da Cunha, nasceu na Europa. Mais precisamente, na cidade de Canaveses, Portugal, em 9 de fevereiro de 1909, filha de José Maria Pinto da Cunha, um barbeiro, e de Maria Emília Miranda. Em 1910, a família já estava instalada no Rio de janeiro, e a bebezinha Maria do Carmo nunca retornaria à Portugal.
Na adolescência, trabalhou em uma loja de chapelaria, e a convivência com a vida agitada da Lapa, bairro do Rio de Janeiro, aproximou-a da música e formou suas referências estéticas. Em 1929, Carmen foi apresentada ao compositor Josué de Barros, profissional que a inseriu em teatros e clubes. A partir de 1930, Carmen Miranda entrou de vez no mundo da música, cantando na Rádio Sociedade. Logo seu disco foi lançado, e o seu sucesso veio com a canção Pra Você Gostar de Mim, mais conhecida como Taí, escrita por Joubert de Carvalho. Nesse período, sua carreira começou a alçar voo, em especial quando realizou sua primeira turnê na Argentina, país ao qual retornou diversas vezes nos anos seguintes.
A combinação de carisma, voz marcante e figurinos exuberantes — turbantes com frutas tropicais e plataformas altíssimas — tornou-a um ícone nacional. Em 1939, convidada para a Broadway, estreou no musical The Streets of Paris. Pouco depois, conquistou Hollywood. Lá, atuou em 14 filmes, incluindo “Copacabana”, de 1946, ao lado de Groucho Marx, e se apresentou em palcos do mundo todo. Na década de 1940, chegou a ser a mulher mais bem paga de Hollywood.
No total, gravou mais de 300 composições, que incluíram, para além dos clássicos já mencionados, sucessos que ainda são escutados no Carnaval, como Mamãe, Eu Quero (Vicente Paiva e Jararaca) e Disseram que Voltei Americanizada (Vicente Paiva e Luiz Peixoto). Tornou-se referência também em moda e comportamento, e ajudou a projetar a imagem do Brasil no mundo. Na manhã de 5 de agosto de 1955, Carmen Miranda foi encontrada morta em um corredor de sua casa em Beverly Hills. A artista foi vítima de um ataque cardíaco aos 46 anos.
A historiadora Tânia da Costa Garcia, docente da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Unesp, câmpus de Franca, estuda a carreira de Carmen, e a ela dedicou um livro, “O “it verde e amarelo” de Carmen Miranda (1930-1946)”. Em entrevista ao podcast MPB Unesp, a docente analisa o surgimento e ascensão da carreira artística da pequena notável.
Uma branca que cantava samba
Tânia Garcia analisa o início da carreira de Carmen Miranda no contexto do Rio de Janeiro do início do século 20. A capital da República era, também, uma cidade espetáculo, onde se concentrava o mundo do entretenimento desde o surgimento do teatro de revista, no século 19. A partir da década de 1930, estruturava-se na capital a produção cinematográfica, num período em que os filmes deixam de ser mudos e ganham falas e músicas. Em outra dimensão, as primeiras produtoras internacionais de discos, como a Columbia, se estabeleceram no Rio de Janeiro, e o rádio, que já existia, passava, a partir da década de 1930, a veicular publicidade, abandonando o perfil educativo que adotava anteriormente.
“Carmen vivia nesse momento da cidade do Rio de Janeiro. Era o momento de ascensão do samba, que passava por uma transição para se tornar o samba moderno de hoje”, diz a historiadora. No ambiente boêmio da Lapa, Carmem foi levada a gravar seu primeiro disco por Josué de Barros, compositor e violinista que frequentava a hospedaria da família dela e conhecia o desejo da moça de se tornar artista. “Carmen tinha sonhos de jovem carioca: gostava de moda, de cinema, estava atenta às revistas que cobriam os artistas de Hollywood. Queria ser modelo, atriz e, por que não, cantora”, diz. Até então, em geral as artistas tinham que passar pelo teatro de revista antes de conseguirem gravar. “Mas as coisas estavam se modificando. Carmen já entrou nessa nova tendência, gravou seu primeiro disco e começou a fazer algum sucesso”, conta.
Entre os diferenciais que a projetaram estava o fato de ser uma cantora branca que se dedicava ao samba, acompanhada por um grupo de músicos, o Bando da Lua.
“Ela fez, ali, uma espécie de mediação. O samba da década de 30, embora estivesse em ascensão, sofria muita resistência por parte das camadas médias, que não queriam ver o Brasil representado por uma música de negros. O samba ainda estava ligado às escolas de samba, que por sua vez estavam associadas ao negro do morro. Esses elementos não eram propriamente a imagem do “Brasil civilizado e moderno”, e resultavam em muita resistência à aceitação do samba. Mas Carmen não era negra, tinha origem europeia. Tocava aquela música, que era associada aos negros, mas acabou como uma mediadora entre os dois mundos. E dispôs, evidentemente, de grande apoio por parte dos meios de comunicação de massa que estavam dispostos a alavancar o samba como um estilo nacional, fazendo dele uma música popular brasileira”, analisa a historiadora.
A indústria fonográfica estrangeira, que tinha aportado no Brasil, se interessou em investir em estilos que pudessem ser apresentados como a música brasileira por excelência. Sambas e marchinhas couberam nessa classificação. “Carmen teve muita sorte de estar presente num momento rico e no qual se apostou, tenazmente, no sucesso da música popular brasileira, que foi definida, basicamente, a partir da música popular que tocava no Rio de Janeiro”.
Nos seus primeiros anos de sucesso artístico, na década de 1930, que foram transcorridos no Brasil, a cantora não era necessariamente associada ao traje de baiana que depois se tornaria sua marca registrada. “Ela era uma intérprete muito particular. Não tinha uma voz potente, mas era muito afinada. Sua forma de interpretar tinha certas particularidades como a picardia, a ambiguidade do sentido das canções, e um certo humor. Essa performance atraiu muitos bons compositores. Carmen gravou músicas de Assis Valente, Ary Barroso e Gilberto Carvalho, dentre outros compositores relevantes” diz Tânia Garcia.
Morena fazia contraste com loiras
Um dos espaços que Carmen conquistou também nesses dez anos iniciais foi o dos filmes musicais da Cinédia. “Podemos dizer que esses musicais eram uma antessala daquilo que ficou conhecido como o cinema de chanchada, que se baseava muito na cultura carnavalesca brasileira. E a Cinédia tinha uma pretensão hollywoodiana, mas já tendia a investir nos musicais tendo como parâmetro o sucesso dos sambas e marchinhas. Carmen fez alguns filmes na Cinédia, durante a década de 1930, sem nunca aparecer vestida de baiana. A primeira vez em que apareceu assim foi em um filme chamado “Banana da Terra”, de 1939”, diz a historiadora.
Depois de aparecer vestida de baiana em “Banana da terra”, cantando O que é que a baiana tem?, Carmen Miranda passou a apresentar essa canção, com o mesmo figurino, no Cassino da Urca. Um produtor americano de passagem pelo Rio de Janeiro, Lee Schubert, assistiu ao número, e a convidou para participar de espetáculos na Broadway. Carmen aceitou e pediu para levar consigo o Bando da Lua, supostamente para assegurar uma sonoridade brasileira para suas canções. Passar da Broadway para Hollywood não foi um passo complicado. “Sua carreira no cinema internacional foi muito atrelada ao estereótipo da baiana, estereótipo que sofreu uma série de complementações, adaptações e invenções”, diz Tânia Garcia.
Mas não apenas baiana. Por meio de seus papéis, a artista representava todas as mulheres latino-americanas, incluindo argentinas, mexicanas e cubanas. Uma mulher ciumenta, selvagem, até agressiva, ligada a uma sensualidade às vezes promíscua. A passionalidade de suas personagens, de aspecto moreno, contrastava com as atrizes norte-americanas com quem ela contracenava, que costumavam se apresentar como loiras angelicais e certinhas, bem diferentes das figuras mais controversas que ganhavam vida nas telas graças a Carmen.
De cantora a ícone
Seu legado para a cultura brasileira foi imenso, diz a historiadora. Um dos integrantes do Bando da Lua, Aloísio de Oliveira, estabeleceu-se nos EUA e colaborou posteriormente para que artistas da Bossa Nova construíssem suas próprias carreiras por lá. Carmen se tornou um ícone internacional de Brasil, de latinidade, de Carnaval, de fantasia. Movimentos importantíssimos para a cultura brasileira, como o Tropicalismo e o Cinema Novo, buscaram dialogar com sua obra e celebrar sua figura, reposicionando-a como ícone cultural.
Agora, 70 anos após sua partida, aos 46 anos, sua obra entra em domínio público. Trata-se de um marco simbólico. A Carmen das canções, dos palcos e das telas, poderá ser celebrada por todos, sem barreiras, o que poderá facilitar sua descoberta pelas novas gerações.
Ouça a seguir a íntegra da entrevista ao Podcast MPB.
Imagem acima: Wikimedia Commons