Foi atrás da bateria que o mineiro Bruno Felga construiu as etapas iniciais de sua carreira, mas hoje ele também transita por palcos e estúdios atuando como percussionista, produtor, cantor e violonista. Desde maio, é possível conferir toda a sua musicalidade colocada a serviço do legado do Clube da Esquina e de outros importantes artistas brasileiros assistindo ao audiovisual Canções do Clube e de Outras Esquinas. Gravado ao vivo na cidade de João Monlevade, MG, o trabalho celebra sua profunda conexão com MPB feita em Minas, fortalecida ao longo de anos de colaborações com alguns dos mais importantes artistas daquele estado.
Bruno nasceu em 7 de outubro de 1984 em Ponte Nova, MG. Os pais não dominavam instrumentos, mas havia tempo e espaço para a música no cotidiano. “Na década de 1980 era comum haver nas casas salas com vitrolas, onde as pessoas se sentavam para simplesmente ouvir música. Na minha infância lembro da minha mãe colocando discos infantis, mas também LPs da Rita Lee, do Ritchie. Meu pai adorava ouvir Raimundo Fagner e outros sons comerciais. Minha mãe tinha uma veia maior de MPB, era de um apuro musical um pouquinho melhor, que me influenciou”, diz. Adolescente, Felga se interessou por música ao escutar o rock brasileiro da época. A cidade, porém, não oferecia muitos meios para que ele pudesse estudar e se desenvolver como músico. A solução era aprender por conta própria.
“Meu pai me incentivava, me ajudou a comprar um instrumento, me levava para os shows, botava minha bateria no carro e levava. Mas não tive o privilégio, a oportunidade de estudar música. Se tivesse estudado, certamente abriria os meus horizontes. Hoje, poderia ser muito melhor do que posso dizer que sou. Mas não tive oportunidade de estudar naquele momento, me desenvolvi sozinho. Saía da escola, 10h, 11h, meio-dia, ia para um estúdio e ficava tocando o dia inteiro. Só chegava em casa à noite”, diz.
Buscando também ajudar financeiramente os pais, começou então a vida de instrumentista. A maior parte das oportunidades para tocar recebendo cachê vinha das contratações da prefeitura para festas e eventos locais. Além Ponte Nova, Bruno apresentava-se na vizinha Viçosa, cidade universitária cheia de bailes universitários e festas. À época, o sertanejo universitário não fora inventado, e os bailes eram movidos a samba, rock e outros estilos populares de então.
Ainda jovem, se aproximou de um dos mais célebres conterrâneos, o músico Tunai (1950 – 2020). Mineiro de Ponte Nova, Tunai morava no Rio de Janeiro desde 1979. Foi lá que teve pela primeira vez gracada uma composição sua, As aparências enganam, e logo por Elis Regina. Um início promissor para alguém que comporia cerca de 200 canções.
A mãe de Tunai seguia residindo em Ponte Nova e era vizinha e amiga de Bruno. “Quando Tunai e João Bosco, que também é pontenovense, vinham para Ponte Nova, a mãe do Tunai me dizia: ‘meu filho, vem ficar com os meninos, não tem ninguém para ficar com eles.’ Eu, com apenas 18 anos, ia e ficava conversando com eles. O Tunai falava de futebol, de briga, de menina e, principalmente, de música. Criei uma sintonia maior com o Tunai porque gostava de rock e achava que as músicas dele tinham uma coisa mais pop. Isso nos aproximou. Comecei a trabalhar com o Tunai e continuei por 16 anos”, diz.
Tunai já era um artista consagrado, com milhares de discos vendidos. Entre os que gravaram seu trabalho estavam ícones como Simone, Elis Regina, Milton Nascimento, Ney Matogrosso, Sérgio Mendes e Roupa Nova. Mesmo tendo acesso a tantos profissionais experientes e de alta qualidade, o compositor mineiro convidou Bruno para atuar como produtor musical de seu trabalho. “Foi uma oportunidade especial. Eu não tinha experiência nenhuma nesse trabalho, e ele me chamou mesmo assim. Teve paciência de me ensinar e me permitir atuar como produtor. Realmente, era uma pessoa muito generosa”, diz.
No período entre 2008 e 2014, Bruno pode conviver também com Milton Nascimento, ou Bituca, para os próximos. Bituca gostava muito de Tunai e, por meio dele, Bruno conviveu com nomes do Clube da Esquina, como Beto Guedes, Lô Borges etc. “O Bituca gravou um disco chamado E a gente sonhando e convidou os meninos de Três Pontas para gravar em sua casa. Todo dia tinha gente na casa do Bituca. Conheci e convivi com essa galera [do Clube da Esquina] toda. Mas com os pés no chão, sem me deslumbrar. Agora, falando com muita modéstia, não tenho dúvidas que o Tunai foi extremamente importante para mim, mas que também fui extremamente importante para a trajetória dele. Se não fosse assim, não teria trabalhado 16 anos com ele”, diz.
O novo trabalho começou a tomar forma ainda no período da pandemia. Durante o isolamento, Bruno se apresentava por meio de lives que traziam repertórios diversificados, indo de Led Zeppelin até Clube da Esquina. Com o tempo, percebeu um interesse maior, por parte do público, pelas chamadas “canções mineiras”.
“As pessoas me pediam para cantar mais canções do Clube da Esquina, contar mais histórias sobre essas músicas. Percebi que tinha uma relação especial com o Clube da Esquina e que, sem perceber, estava me especializando nesse repertório. Entretanto, pelo fato de ter sido produtor do Tunai, tive o privilégio de ter convivido com esses caras do clube e conhecer muitas histórias”, diz.
Daí surgiu a ideia de dedicar um trabalho a esse repertório. Mas não apenas a ele. “Quanto às ‘outras esquinas’, escolhi esse nome porque não poderia deixar de homenagear também mais artistas que me influenciaram. O Tunai sempre dizia: ‘Não sou do Clube da Esquina, sou de outra esquina’ ”, lembra.
Essa frase inspirou o título do show, durante o qual foram gravadas 17 faixas. Entre os “clássicos da mineiridade” pinçados para o repertório da apresentação estão Feira Moderna, Quem Sabe Isso Quer Dizer Amor, Amor de Índio, Trem Azul e Caçador de Mim. As faixas de outras esquinas incluem Fullgás, de Marina Lima e Antônio Cícero, e Frisson , parceria de Tunai e Sérgio Natureza. Canções do Clube e de Outras Esquinas foi realizado com recursos da Política Nacional Aldir Blanc, por meio do Ministério da Cultura e da Fundação Casa de Cultura da Prefeitura Municipal de João Monlevade.
Se o repertório é conhecido, os arranjos foram concebidos para surpreender e até agitar. “A proposta é respeitar as canções e seus compositores, mas mostrar um som mais atualizado. Eu venho desse universo do baile e sou baterista de uma banda chamada All Star, é um projeto paralelo. Conheço as características do público atual que consome música no país. Pelo fato de ter me adaptado a fazer show, a jogar mais para cima, a fazer os arranjos mais para frente, a interagir, a fazer contato visual com o público, que é muito importante. Para esse audiovisual, pensei em imprimir a realidade dos shows que tenho feito nesse momento, imprimir essa energia”, diz.
Ouça abaixo a íntegra da entrevista ao Podcast MPB.
Imagem acima: crédito: Thales Canaan