O solfejo de uma vida dedicada às juventudes

Com uma trajetória ligada à formação de jovens músicos de orquestras, coros e madrigais, docente Lutero Rodrigues regeu pela última vez a Orquestra Acadêmica da Unesp no Instituto de Artes

Quando foi convidado pela então secretária estadual de cultura, a atriz Bete Mendes, conhecida como “Bete Sem Medo”, para dirigir o Festival de Inverno de Campos do Jordão no lugar do maestro Eleazar de Carvalho, o regente Lutero Rodrigues ouviu de quem sucederia uma crítica ácida: a secretária estava trocando um “general 4 estrelas” por um “sargento”. Ao ser confrontado com a declaração, Lutero surpreendentemente concordou com a afirmação, mas rebateu: “concordo que ele (Eleazar) seja um general 4 estrelas e eu, um sargento. Só que o sargento conhece melhor os soldados do que o general”.

Corria o inverno de 1987 e Lutero Rodrigues, prestes a completar 37 anos na época, substituiu naquele ano e nas três temporadas posteriores do governo de Orestes Quércia aquele que até hoje considera o “maior maestro brasileiro de todos os tempos”, nome certo das listas dos melhores regentes que o país já produziu. “Ninguém no Brasil chegou a reger as mesmas orquestras que o Eleazar regeu, ninguém”, elogia. “Mas ele era sistemático, tinha suas idiossincrasias, como pedir demissão para que o secretário (de cultura) desse tudo o que ele queria. A Bete Mendes não deu e me convidou. Fui diretor artístico de Campos do Jordão, lembro que ia para o festival de fusca azul, que era o carro que tinha na época. Fiquei até 1990 (à frente do festival de Campos). Depois, recebi muitos convites para reger. Regi bastante…”

Nos inúmeros coros, madrigais e orquestras que regeu, Lutero Rodrigues sempre conheceu bem seus “soldados”, como respondeu a Eleazar de Carvalho. Afinal, como ele mesmo reconhece ao ler a sua trajetória em retrospectiva, tem como vocação a educação musical e o trabalho com as juventudes. Foi assim nos 20 anos em que lecionou na graduação do Instituto de Artes (IA) da Unesp e nos 16 anos em que dirigiu a Orquestra Acadêmica da Universidade, um projeto de extensão da Pró-Reitoria de Extensão Universitária e Cultura que complementa a formação dos discentes do curso de música.

“A Orquestra Acadêmica foi uma das coisas mais prazerosas que fiz na vida, com resultados tremendos. Mas nem sempre tão visíveis”, diz o maestro. “Uma das partes principais do festival de Campos do Jordão, da programação artística, é o trabalho pedagógico com alunos nas orquestras que formamos lá. Esse trabalho pedagógico de formação é algo que conheço bem.”

Com muitas homenagens, Lutero Rodrigues liderou, em 26 de junho passado, o concerto de despedida dele da regência da Orquestra Acadêmica da Unesp. Prestes a completar 75 anos, neste 7 de agosto, o regente se retira das salas de aula da graduação, seguindo como professor apenas na pós-graduação. “Não vou encerrar completamente. Vou aumentar o número de orientandos no mestrado e no doutorado”, diz o docente. “O ensino para mim… O que mais vou sentir falta agora é de dar minhas aulas. A aposentadoria para mim vai ser (uma mudança) tremenda”, admite.

A vocação para lecionar, segundo Lutero, vem da influência dos pais e da formação religiosa. Filho de um pastor presbiteriano, que o batizou em homenagem ao líder da Reforma Protestante, o maestro passou a infância e a adolescência entre o interior de São Paulo e do Paraná acompanhando as músicas e os coros na igreja e a veia de seus pais para o ensino formal. “Embora o meu pai fosse pastor, ele era professor também. Quando podia trabalhar como professor, ele era professor. E minha mãe trabalhou como professora de história. Então eu sempre tive um amor grande pelo ensino”, lembra.

Maestro Lutero Rodrigues recebe o carinho dos estudantes da Orquestra Acadêmica da Unesp (Crédito: Divulgação/Instituto de Artes)

Primeiras regências

Aos 16 anos, quando se mudou para a capital paulista, Lutero Rodrigues já sabia que queria estudar música. Tomou aulas de regência de coral com o pastor João Wilson Faustini dentro da igreja protestante e, fora do ambiente religioso, fez um curso livre de regência coral com o alemão Klaus-Dieter Wolff. Conheceu graduandos de música da USP, onde fez o curso universitário, e se apresentou para suceder Samuel Kerr na regência do coro de uma igreja protestante.

“Apesar de serem pessoas simples, tinham um trabalho de dez anos com o Samuel, que fez com que lessem música perfeitamente. Eu não podia ter problema de solfejo com eles porque eles liam bem. Tinha que ter uma leitura melhor que a deles, quer dizer, eu tinha que estudar muito. Foram dois anos preciosos na minha vida”, lembra.

O começo dos estudos para regência de orquestra foram aulas particulares com o maestro Ronaldo Bologna, que abriram caminho para a primeira vez regendo uma orquestra e o início do trabalho com jovens músicos: a então chamada Orquestra Sinfônica Jovem Municipal. No início dos anos 1980, após um período de estudos em Detmold, na Alemanha, onde teve contato com nomes como o alemão Martin Stephani e o romeno Sergiu Celibidache, Lutero Rodrigues voltou ao Brasil determinado a se consolidar como regente de orquestra. “O grande problema da vida de um regente é ter trabalho porque são muitos os músicos de uma orquestra. Mas o regente é um só”, diz o professor, que retomou o trabalho com jovens. “Comecei então a me interessar por um tipo de possibilidade de reger, que é reger orquestras de jovens, as chamadas orquestras em formação e formadoras de músicos profissionais.”

Convidado a reger a orquestra do Conservatório de Tatuí, passou a conhecer outros regentes que faziam o mesmo trabalho com orquestras de jovens pelo estado de São Paulo, como Marcos Pupo Nogueira, que se tornaria professor e diretor do Instituto de Artes da Unesp e o levou para a Universidade, em meados dos anos 2000. Antes, Lutero Rodrigues foi o regente da Orquestra Sinfônica Juvenil do Litoral, participou de uma série de encontros de orquestras paulistas de jovens e passou a reger, com apresentações no exterior, a Orquestra de Cordas da Camerata Antiqua de Curitiba. Depois da experiência como diretor artístico no Festival de Inverno de Campos do Jordão, o maestro foi o regente da Sinfonia Cultura, a orquestra da Rádio e TV Cultura, de 1997 a 2005, ano em que começou a lecionar no Instituto de Artes da Unesp, inicialmente como professor substituto.

Em 2009, concluiu o doutorado em musicologia pela USP com uma tese que recebeu no ano seguinte o Prêmio Funarte de Produção Crítica em Música. No trabalho, sustentou como o modernista Mário de Andrade não havia rompido completamente com a música clássica de Carlos Gomes. “Meu foco foi a consequência da Semana de Arte Moderna sobre a imagem de Carlos Gomes. Consigo provar na minha tese que foi mais obra do Oswald de Andrade, que queria fazer barulho e escândalo para divulgar a Semana. O Mário de Andrade, meu foco principal, acabou sendo um fã do Carlos Gomes depois…”

Maestro Lutero Rodrigues dirigiu a Orquestra Acadêmica da Unesp por 16 anos (Crédito: Divulgação/Instituto de Artes)

Repertório nacional

Membro titular da Academia Brasileira de Música, o maestro sempre teve como prioridade o repertório brasileiro, do qual contabiliza a regência de centenas de obras. No concerto de despedida da Orquestra Acadêmica da Unesp, o programa misturou composições de Camargo Guarnieri e Mozart à peça “Divertimento para Orquestra de Cordas”, de Béla Bartók, incluída como desafio maior para os estudantes. “É uma peça que muita orquestra profissional sofre para tocar”, diz Lutero Rodrigues, que se orgulha de ter apurado o talento de uma série de jovens universitários. “Todo o trabalho de repertório da Orquestra (Acadêmica) foi sempre dirigido para isso, para a formação deles. É um complemento da formação. Você tem aula de instrumento com um professor? Tenho, mas a prática de orquestra é lá com a gente, que é um tipo de aula. Algo que não tem limite, não tem fim.”

Última spalla (violinista que cumpre o papel de violino principal da orquestra) escolhida pelo docente para a Orquestra Acadêmica da Unesp, no início deste ano, Camila Mirelli da Silva Rodrigues, de 23 anos, é moradora do Parque Taipas, bairro do extremo norte da capital paulista, está no terceiro ano do curso de graduação e é bastante grata pela oportunidade de conviver com o professor Lutero Rodrigues, a quem define como “um maestro que acolhe”. “Ele me fez entender que um ambiente de orquestra pode ser agradável. É o que sinto e acredito que a maioria dos outros (integrantes) falaria a mesma coisa”, diz.

O concerto de 26 de junho, que marcou a despedida do maestro, está disponível no canal do Instituto de Artes (abaixo).

Na imagem acima: Apresentação da Orquestra Acadêmica da Unesp sob regência do maestro Lutero Rodrigues (Crédito: Divulgação/Instituto de Artes)