Obra de Sebastião Salgado destaca a capacidade da fotografia para contar histórias e tem um olhar mais europeu do que brasileiro, diz pesquisador da Unesp

Estudioso é autor de diversos artigos e capítulos de livro que esmiuçam o trabalho do fotógrafo mineiro recentemente falecido, que foi celebrado como um dos maiores fotógrafos em atividade e se tornou o primeiro brasileiro a integrar a Academia de Belas Artes da França.

A morte do mineiro Sebastião Salgado, em 23 de maio, encerrou uma das trajetórias mais brilhantes na fotografia brasileira e mundial. No entanto, sua obra permanecerá encantando admiradores e servindo de base para estudos e investigações de pesquisadores nas áreas de fotografia, audiovisual e comunicação.   

Sebastião Ribeiro Salgado Júnior Júnior, mais conhecido como Sebastião Salgado, nasceu em Minas Gerais, em 8 de fevereiro de 1944. Formou-se em Economia em 1967 e exilou-se em Paris durante a ditadura militar brasileira. Em 1971, na África, onde estava como integrante de uma missão da Organização Internacional do Café, seu horizonte profissional sofreu uma mudança radical quando, pela primeira vez, empunhou uma câmera Leica da esposa, Lélia Wanick, para registrar a realidade social que observava. Em 1973, abandonou a carreira na economia para dedicar-se à fotografia, ingressando nas agências Sygma, Gamma e, posteriormente, na lendária Magnum.  Lá, estabeleceu-se como um dos profissionais da fotografia mais destacados e reconhecidos do mundo, com destaque para a proposta social de seu trabalho autoral.

Dotado de um estilo marcante, celebrizado por belíssimas imagens em preto e branco das quais emana um profundo respeito pela dignidade humana, dedicou-se a projetos de alcance monumental, que demandavam anos de dedicação. A série Trabalhadores, elaborada entre 1986 e 1992, documentou o desaparecimento do trabalho manual em 26 países. Já Êxodos, concebida de 1993 a 1999, capturou os dramas de refugiados de 40 nações. Serra Pelada, publicada em 1999, imortalizou as imagens dos chamados “formigueiros humanos”, uma metáfora crua da exploração que imperava na região.  Com Gênesis, publicado em 2013, o fotógrafo enfocou a pauta ambiental, e retomou o tema em Amazônia, série de fotografias coletadas em 48 expedições pela floresta publicada em 2021.

Esse ativismo ganhou forma concreta em 1998 quando, ao retornar à fazenda de sua família, em Minas Gerais, e encontrá-la devastada, fundou com Lélia o Instituto Terra. A instituição reflorestou 608 hectares de Mata Atlântica com mais de 2 milhões de árvores nativas e protegeu cerca de 2.000 nascentes do Rio Doce, tornando-se referência crucial após o desastre de Mariana em 2015.  

O documentário “O Sal da Terra”, de Wim Wenders, que abordava sua história de vida, levou o Oscar da categoria de 2014. Seu trabalho fotográfico foi distinguido por diversas honrarias. Entre elas, foi o primeiro brasileiro a integrar a Academia de Belas Artes da França. Salgado havia se aposentado do trabalho de campo em 2024, dizendo que seu corpo estava sentindo “os impactos de anos de trabalho em ambientes hostis e desafiadores”. Faleceu aos 81 anos.

O jornalista e fotógrafo Denis Porto Renó, especialista em Comunicação e Ecologia dos Meios e Narrativas Imagéticas e coordenador do curso de Jornalismo da Faac Unesp em Bauru, há anos se dedica a investigar a obra do fotógrafo mineiro.

Ele conta que, desde que se tornou jornalista, interessou-se pela trajetória de Salgado, em quem enxergou um ídolo no fotojornalismo. “Em 2018, tomei a decisão de preparar um projeto para a FAPESP sobre a obra dele que incluía uma estadia de 15 dias em Paris. Em janeiro de 2020, estava me preparando para ir para lá. Daí houve a pandemia, e tudo fechou. Tivemos que transformar adaptar essa ida para outro formato, e entrevistei o Sebastião Salgado por via remota “, relata Renó.

Renó desenvolveu dois projetos pessoais de pesquisa sobre a produção fotográfica de Salgado, e também orientou um mestrado em comunicação que analisou o processo de transição estética entre as séries Êxodos e Gênesis.  Mais recentemente, orientou uma pesquisa de iniciação científica sobre Perfume de sonho, outro projeto, menos conhecido, do célebre fotojornalista.

Com o embasamento obtido a partir das diversas pesquisas, Renó discute a obra do mineiro em suas aulas, e também dedicou a ela artigos e capítulos de livros. Em um deles, por exemplo, procura apresentar os elementos particulares do seu olhar fotojornalístico.

“Em diversos momentos da sua trajetória, foi dito que se tratava de um brasileiro que aprendeu a fotografar na Europa, mas mantinha, em suas imagens, um ‘olhar brasileiro’. E, nos artigos, defendo que o que se encontra lá é um olhar europeu, e não brasileiro. As imagens com subexposição são algo que nos remete à Europa, onde há pouca luz. No Brasil, e nos países tropicais de maneira geral, temos muita luz”, diz.

Segundo o professor da Unesp, o trabalho do mineiro se destaca por seu talento ímpar em empregar imagens para estabelecer uma construção discursiva. “Todas as imagens de Sebastião Salgado contam histórias. Um pouco menos em Outras Américas, o primeiro trabalho. Mas Êxodos, Trabalhadores, Gênesis e Amazônia apresentam uma forma muito expressiva de contar histórias. Isso tem sido um exemplo para mim. Acabei de iniciar um projeto também financiado pela FAPESP, chamado Portugal no Brasil, que tem muito dessa influência. Sempre trabalhei buscando essa capacidade narrativa por meio de imagens sem textos, ou acompanhada por pouco textos. Textos que são complementares, não possuem protagonismo”, diz.

Renó conta que a entrevista com Salgado teve como foco a transição de sua obra, da fase de Êxodos para a de Gênesis. Para o projeto de Êxodos, Salgado praticou uma fotografia social que incluiu o registro de povos e comunidades em momentos de grande sofrimento, como a fome que devastou a Etiópia e o genocídio de Ruanda, ambos países africanos. Sua perspectiva era apresentar ao mundo a memória destes eventos terríveis, a fim de que não se repetissem, ou, no mínimo, para provocar reflexão. Mas, terminou o projeto deprimido e deu um tempo na fotografia.

“Ele de fato falou sobre esse adoecimento. Não queria sair da cama, não ia fotografar mais. A Lélia sugeriu que eles criassem uma ONG, o Instituto Terra, para atuar na área onde ficava uma fazenda do pai, toda desmatada. E ele reflorestou a fazenda inteira”, relata. Isso motivou Salgado a sair da cama e a trabalhar no projeto de reflorestamento. “A Lélia foi levando o Sebastião para a fotografia de natureza. E, assim, começou a se reencontrar com a fotografia”, diz.

A principal contribuição de Salgado para o fotojornalismo, diz Renó, está na reflexão que seu trabalho suscitou quanto ao caráter de registro histórico que a fotografia pode alcançar. “Em entrevistas, ele dizia que a fotografia é o tempo, e fotografar é viver o tempo. É preciso escolher o momento certo, não dá para fazer foto correndo”, analisa. Aos brasileiros, legou o exemplo de que o país possui profissionais talentosos o suficiente para figurarem em listas dos mais qualificados da atualidade, e serem reconhecidos por instituições como a Academia Francesa de Artes. “Ele mostrou que a fotografia, mais do que estética, é uma narração.”

Confira abaixo a entrevista completa no Podcast Unesp.

Crédito: Fernando Frazão/Agência Brasil