Oferta de cuidados paliativos a pacientes que sofreram AVC proporciona mais qualidade de vida em momento delicado e não afeta tratamento

Estudo realizado no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Botucatu mostra que pacientes assistidos por equipes de cuidados paliativos receberam mais medicamentos para dor e tiveram mais contato com sua família na reta final da vida. Parentes dos enfermos também se beneficiaram do atendimento.

Os cuidados paliativos (CP) em saúde destinam-se a proporcionar qualidade de vida a pacientes acometidos de doenças crônicas, graves ou que impliquem risco de óbito. No entanto, dentro e fora do Brasil, a própria classe médica ainda cultiva ideias inadequadas, como a de que a implementação dos cuidados paliativos estaria relacionada à suspensão dos tratamentos ativos e até mesmo à aceleração de um desfecho fatal. Um novo estudo, conduzido por profissionais da Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB) da Unesp, pode ajudar a mudar esta mentalidade, ao analisar os cuidados paliativos e os tratamentos oferecidos no Hospital das Clínicas da FMB a 77 pacientes internados por acidente vascular cerebral (AVC) isquêmico e que vieram a óbito, entre janeiro de 2017 e dezembro de 2018.

O estudo fez parte da pesquisa de doutorado de Maiara Silva Tramonte, médica neurologista formada pelo HC-FMB, e foi coordenado por Rodrigo Bazan, professor da FMB e orientador de Tramonte, e por Laura Cardia Gomes Lopes, professora do Departamento de Neurologia e do Serviço de Cuidados Paliativos do HC-FMB. Os resultados foram publicados no American Journal of Hospice and Palliative Medicine.

Os pesquisadores avaliaram 14 diferentes procedimentos invasivos e tratamentos com opioides ofertados aos dois grupos, e outros parâmetros, como o uso de antibióticos, o tempo de permanência na UTI e o percentual de pacientes que foram transferidos da UTI para a enfermaria. 

O estudo observou que, no grupo dos indivíduos avaliados pelos CP, 71,8% dos pacientes foram transferidos da UTI para a enfermaria, contra apenas 23,7% do Segundo grupo. Os do primeiro grupo também ficaram menos dias na UTI: menos de um dia, em média, contra dois dias no outro grupo.

O fato de passarem menos tempo na UTI significa que esses indivíduos puderam desfrutar de um contato maior com suas famílias na fase final de sua vida. Por outro lado, o acesso aos CPs não implicou uma redução no uso de antibióticos, em comparação ao grupo de controle. Essa constatação ajuda a desmistificar a ideia de que os cuidados paliativos significam o abandono da oferta das terapias convencionais. Por outro lado, verificou-se um aumento de 31 vezes no uso de analgésicos (opioides) para redução da dor, em comparação ao grupo controle, o que teve como efeito melhorar o conforto e a qualidade de vida dos pacientes, visto que a dor e a falta de ar são sintomas comuns nesta fase, e ambas são tratadas com opioides.

“Nosso estudo foi retrospectivo, realizado quando todos os pacientes já haviam ido a óbito. Mas o que constatamos foi que o grupo que recebeu cuidados paliativos teve um final de vida com melhor qualidade, sem que isso tenha antecipado ou retardado o desfecho clínico”, diz Tramonte, a primeira autora do artigo.

Atendimento inclui família do paciente

A pesquisa reforça que a implementação dos cuidados paliativos não deve ser vista como uma alternativa ao tratamento, mas como uma abordagem complementar para garantir melhor qualidade de vida. E sugere que, com critérios bem definidos e tomada de decisão compartilhada, não há razão para temer a inclusão precoce dessa modalidade de cuidado.

“Ontem mesmo recebi mensagem da esposa de um paciente muito querido que faleceu há um ano. Ela falou sobre a data do falecimento dele, como o tempo passa rápido, e que jamais irá se esquecer de mim e de toda a equipe, que é muito grata pelo cuidado que prestamos. Nós cuidamos dele não só no final da vida, mas ao longo de alguns anos, e por isso pudemos construir um forte vínculo”, conta Tramonte, ressaltando que o vínculo entre cuidadores e pacientes é fundamental para o êxito de qualquer atendimento.

“Ao contrário do que muitos pensam, são cuidados voltados não só para pessoas com câncer ou no final da vida, mas para qualquer pessoa que esteja sofrendo devido a uma doença grave”, explica Laura Cardia Gomes Lopes.

“Por definição, os cuidados paliativos são uma abordagem multidisciplinar que tem o objetivo de melhorar a qualidade de vida do paciente, seja ele adulto ou criança, idoso ou jovem.” Ela diz que a modalidade também proporciona apoio aos familiares do paciente diante de um momento particularmente difícil. A ideia central é prevenir e aliviar o sofrimento, identificando precocemente a dor e os demais sintomas, físicos, psicológicos e sociais.

As equipes que atuam na oferta de CPs possuem perfil multidisciplinar, engajando, além dos médicos e do pessoal de enfermagem, profissionais nas áreas de psicologia, fisioterapia, fonoaudiologia, nutrição, assistência social e capelania, dentre outros. “Nosso foco é o paciente em sua integralidade. E isso inclui desde o manejo de sintomas, como dor, náusea, falta de ar, ansiedade, até o apoio espiritual, passando pelo auxílio no planejamento do cuidado e na tomada de decisões”, detalha Tramonte.

Área ainda é nova no Brasil

Rodrigo Bazan afirma que os cuidados paliativos ainda são uma área relativamente nova no Brasil, mas que vem se consolidando em hospitais terciários, como o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Botucatu da Unesp e o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

Vale lembrar que os hospitais terciários são instituições de grande porte, capazes de oferecer tratamentos especializados e de alta complexidade. Bazan coordena a Unidade de AVC do HC-FMB-UNESP, que possui credenciamento de máxima complexidade.

“Inicialmente, os CPs eram mais voltados para pacientes oncológicos. Mas, hoje, passaram a ser reconhecidos e adotados em diversas áreas, incluindo a neurologia”, diz.

Ele acrescenta que, “até pouco tempo atrás, havia um preconceito, inclusive dentro da comunidade médica, sobre a função dos cuidados paliativos. Muitas vezes, acreditava-se que essa abordagem significava interromper tratamentos e acelerar o óbito, o que é um equívoco. Na realidade, os pacientes que recebem cuidados paliativos têm melhor controle da dor, menor sofrimento e, em muitos casos, até um tempo de sobrevida maior. Mas essa revisão é muito recente. Tanto que os CPs só foram incluídos como matéria obrigatória na grade curricular dos cursos de medicina em 2023”.

Unesp oferece estágio em cuidados paliativos

A Unesp está bem-posicionada em relação a isso, pois já oferece estágios específicos em CPs para neurologistas. E a doutora Laura Cardia Gomes Lopes é considerada uma das pioneiras na área, trabalhando especificamente com cuidados neuropaliativos, voltados para pacientes com doenças neurológicas crônicas e graves.

“A partir da ideia de que é recomendado oferecer CPs a qualquer paciente que apresente uma doença grave, começamos a entender que esses cuidados não devem ser oferecidos apenas no final do curso da doença, e sim desde o seu diagnóstico. Pense, por exemplo, na pessoa que é acometida por um AVC. Ela terá provavelmente muitas mudanças na vida. Poderá apresentar limitação de funcionalidade, necessidade de abandonar o trabalho, e até perda da fé. E corre o risco de complicações, inclusive de novos eventos cardiovasculares. Os cuidados paliativos podem oferecer a esse paciente muitos recursos para conviver com as sequelas, minorar o sofrimento e reconstruir a vida”, resume Tramonte.

Imagem acima: atendimento no HC-FMB. Crédito: Assessoria de Imprensa/ FMB