Gal para sempre Fatal

Pesquisa analisa as contribuições da cantora baiana para o Tropicalismo e o movimento da Contracultura no período entre 1968 e 1973, e o impacto que sua obra e sua figura exerceram sobre a cena cultural brasileira no momento mais difícil dos anos de chumbo.

Gal Costa (1945-2022) entrou para a história da nossa música como uma das mais belas e mais afinadas vozes femininas que já pisaram nos palcos brasileiros. Mas, pouco depois de ter iniciado sua carreira como cantora de Bossa Nova, seu nome ficou conhecido também por sua colaboração com o movimento Tropicalista, na segunda metade dos anos 1960,  e por se tornar um símbolo dos hippies do início dos anos 1970, que a elegeram como  “musa do desbunde”.

Este período entre o fim de uma década e o começo de outra foi extremamente movimentado na vida cultural brasileira, marcado pela expansão do mercado de bens simbólicos no Brasil e o recrudescimento da repressão por parte da ditadura militar. Também por isso, esta etapa quase inicial na trajetória da artista baiana é o objeto da pesquisa “A Trajetória Artística de Gal Costa entre o Tropicalismo e a Contracultura (1968-1973)”, conduzida como parte do mestrado do historiador Felipe Aparecido de Oliveira Camargo no Programa de Pós-Graduação em História da Unesp.

Camargo diz que a inspiração para o trabalho surgiu a partir de suas análises da literatura sobre o Tropicalismo. “Eu fui notando como o nome da Gal é muito mencionado quando se fala em Tropicalismo. No entanto, diferentemente do que acontece com seus colegas Caetano e Gil, senti falta de alguma pesquisa que buscasse entender qual foi a contribuição da Gal para o movimento tropicalista e para a cena da Contracultura que se difundiu entre os anos de chumbo. Uma coisa é saber que aquela personagem é muito importante no movimento, mas outra  é conhecer sua contribuição particular.”

A dissertação foi defendida em 17 de dezembro, no câmpus da Unesp em Franca, teve como orientadora a historiadora Tânia da Costa Garcia e contou com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). O trabalho focou os álbuns lançados pela intérprete, e também os registros de suas apresentações, shows, entrevistas, materiais de imprensa e instrumentos de pesquisa de vendas de discos.

Nacional X estrangeiro


O pesquisador diz que, durante durante as décadas de 1960 e 1970, houve um movimento de institucionalização da MPB. Em paralelo, no entanto, deslanchavam iniciativas renovadoras na cena artística, e a música popular se abriu para novas tendências e novas estéticas. Entre estas novas tendências estavam elementos do rock inglês e do rock norte-americano, que eram bastante ligados à cena da Contracultura.

“Pode-se dizer que o Tropicalismo renovou o campo da MPB porque trouxe elementos estéticos que eram vistos com desprezo até o período subsequente ao golpe militar de 1964. Uma parte da intelectualidade brasileira, e dos artistas brasileiros, enxergava nestas influências símbolos do imperialismo. Contra isso, propunham uma arte genuinamente brasileira, uma canção popular assentada na base do nacional popular”, diz Oliveira.

O Tropicalismo colocou essa dicotomia nacional X estrangeiro em xeque. Os artistas tropicalistas se colocaram no debate público sobre a cultura, alertando para o risco de que a arte brasileira afundasse no isolacionismo e perdesse o contato com aquela estética nova, que mobilizava jovens de todo o mundo.

“Os tropicalistas começaram a incorporar essas tendências, essa linguagem, de uma maneira mais programática dentro dos debates culturais daquele momento. E foi a partir daí que a Gal entrou nessa história. Ela foi coletando todas aquelas informações estéticas, tanto nacionais e internacionais, moldando e incorporando à performance dela.”, relata o pesquisador.

Foram elegidos como objetos para estudo os LPs que ela lançou após sua participação no disco Tropicália ou Panis et Circensis (1968): Gal Costa (Philips/1968), Gal (Philips/1969), Legal (Philips/1971), -Fa-Tal- (Philips/1971) e Índia (Philips/1973). Textos, matérias, críticas e reportagens publicadas pela imprensa também foram cotejados.

A virada estética protagonizada pela cantora  projetou-a nos palcos, e seus shows emendavam temporadas de grande sucesso. Mas não se restringia a estes momentos de maior visibilidade, abrangendo também sua técnica de interpretação vocal, as gravações de estúdio, as capas dos discos e até seu comportamento pessoal. Tudo somava, construía-se uma imagem particular de Gal junto à imprensa, ao mercado musical e ao público.

Transformação, mudança e guinada

Estas três palavras se repetem ao longo do texto, e são essenciais para que se possa compreender a vida de Gal entre 1968 e 1973. “Realmente, essas palavras são importantes. Pudemos constatar o quanto Gal esteve frequentemente modificando sua performance, adicionando novos elementos artísticos e completando outros, na medida em que entrava em contato com diversas informações musicais e culturais. Era uma identidade artística em permanente construção”, conta o historiador.

Nesse sentido, tendo como base as reflexões de Pierre Bourdieu, a trajetória foi analisada dentro de um conjunto de relações objetivas que uniram o agente considerado “a cantora” ao conjunto de outros agentes envolvidos no mesmo campo e confrontados com o mesmo espaço de possibilidades. “Em outras palavras, não estamos preocupados em traçar uma narrativa teleológica da carreira da intérprete, como se ela estivesse predestinada a posição de liderança de um ou outro movimento estético ou comportamental. As investigações tiveram como premissa o entendimento das complexas redes de sociabilidade, culturais e estéticas em que a cantora esteve envolvida”, explica.

A pesquisa estava ainda em seu primeiro ano quando Gal Costa faleceu, em 09 de novembro de 2022, aos 77 anos de idade. À época, boa parte dos obituários publicados pela grande imprensa destacaram, justamente, sua participação no movimento tropicalista e na contracultura durante os “anos de chumbo”.

O obituário publicado no jornal Folha de S. Paulo, por exemplo, dizia: “Gal Costa foi uma das revoluções nas vozes e nos costumes na música brasileira desde o seu surgimento na cena nacional, na década 1960”. O texto também mencionava sua contribuição ao disco coletivo Tropicália ou Panis Et Circensis (Philips/1968) e o show Gal a Todo Vapor, este apresentado como um dos “espetáculos de maior repercussão da história da MPB”.

Na mesma data, outro obituário, intitulado Gal Costa, a musa eterna da Tropicália, foi veiculado pela Folha de Pernambuco. Nomeando Gal como “porta-voz da contracultura do tropicalismo”, a publicação enfatizou que foi devido a sua “sensualidade transgressora” que a baiana passou a ser chamada de “musa do desbunde” em meados da década de 1970.

Tais  obituários terminaram por reforçar a constatação de que, embora a carreira da cantora tenha se iniciado em meados da década 1960 e se estendido até bem dentro do século 21, cobrindo quase seis décadas, seu legado musical era constantemente associado  ao seu período tropicalista e contracultural.

Isso é algo surpreendente porque Gal Costa assumiu múltiplas personas artísticas ao longo das décadas, e se firmou como uma das principais intérpretes da MPB. Cantou repertórios variados como bossa nova, samba, jazz, rock, frevo, marchinhas e baião. No entanto o interesse por esta fase continuou superando todos os demais, tanto que este é o período abordado em sua cinebiografia Meu Nome é Gal, lançada em 2023.

“Há várias razões que explicam por que essa fase de sua carreira é tão reverenciada, e algumas delas aparecem nas páginas da dissertação”, diz Camargo.

Confira abaixo a entrevista completa no Podcast MPB Unesp.

Imagem acima: Wikimedia Commons