Quem já se aventurou por qualquer floresta tropical, mesmo que apenas por algumas horas, e esqueceu de se proteger com quantidades suficientes de repelente, certamente sentiu na pele as dificuldades de conviver com alguns de seus mais vorazes habitantes: os mosquitos. A picada causa desconforto por si mesma, mas também pode redundar em complicações mais severas devido à possibilidade de transmissão de vírus causadores de doenças como a dengue, a malária e a leishmaniose cutânea. Esta última enfermidade, aliás, integra a lista das dez principais doenças tropicais negligenciadas, produzida pela Organização Pan-Americana de Saúde, e estima-se que gere anualmente mais de 50 mil novos casos no mundo.
A leishmaniose cutânea, ou tegumentar, como também é chamada, é uma doença não contagiosa que provoca úlceras na pele e nas mucosas. As lesões podem levar anos para cicatrizar, deixando a pele do paciente marcada para o resto da vida. Outro fator que torna essa patologia particularmente preocupante é a falta de avanços em prevenção e tratamento. Enquanto a vacinação contra a dengue já é uma realidade, a terapêutica para a leishmaniose evoluiu muito pouco desde que foi descrita, 120 anos atrás. De maneira geral, nos últimos 70 anos, o tratamento mais adotado envolve a aplicação de dolorosas injeções no músculo ou na área infectada.
No Brasil, ela ocorre com maior frequência nos estados da floresta amazônica. A região é classificada como de alto risco para eclosão de epidemias, devido à grande variedade de vetores que podem ser envolvidos no processo de transmissão, como moscas, mosquitos e mamíferos, e, também, às altas taxas de desmatamento. Para além da relação entre a destruição de florestas e o surgimento de casos de doenças tropicais, um grupo de pesquisadores liderados por Tatiana Pineda Portella, da USP, e que envolveu docentes da Unesp, da UFABC e da Universidade de Lausanne, na Suíça, identificou quais as formas de uso da terra que apresentam potencial maior para resultar no aumento do risco de casos de leishmaniose cutânea.
Os resultados foram divulgados no artigo “Bayesian spatio-temporal modeling to assess the effect of land-use changes on the incidence of Cutaneous Leishmaniasis in the Brazilian Amazon”, publicado na revista científica Science of the Total Environment. O trabalho teve como objetivo analisar de que maneira a conversão do uso de terra na floresta amazônica, especialmente devido ao avanço das atividades humanas, pode se relacionar com a incidência de casos de leishmaniose cutânea na região. A partir de análises que cobriram dados socioeconômicos, de vegetação e de clima, referentes ao período entre 2001 e 2017, o grupo de pesquisadores constatou que o avanço da pecuária é a principal ameaça para o crescimento da incidência de leishmaniose cutânea em cidades amazônicas.
Presença de gado impacta no número de casos
A ideia do estudo surgiu depois que análises prévias apontaram as cidades amazônicas como principal foco da leishmaniose cutânea, em especial aquelas situadas no chamado arco do desmatamento. “Sabíamos, a partir de estudos sobre outras doenças tropicais, que essas regiões podem ser problemáticas. Quisemos investigar, especificamente, as eventuais correlações entre o desmatamento e a leishmaniose cutânea”, diz Roberto Kraenkel, pesquisador do Instituto de Física Teórica da Unesp, que participou do estudo. “Queríamos sair do âmbito do ‘achismo’ e obter informações precisas, especialmente sobre o aspecto ambiental.”
O grupo empregou metodologias estatísticas para combinar séries diferentes de dados relativos ao uso de terra, à população das cidades e à situação socioeconômica dos municípios, e também registros do clima e da temperatura. No total, foram analisados dados de 503 cidades da Amazônia Legal, região que compreende os estados de Acre, Rondônia, Roraima, Pará, Maranhão, Tocantins e Mato Grosso. Foram utilizados dados relativos ao período entre 2001 e 2017, e o largo intervalo de tempo analisado trouxe mais segurança aos pesquisadores para apontar os principais fatores associados ao crescimento dos casos de leishmaniose cutânea.
Além da escala temporal, outro diferencial da pesquisa está em considerar os diferentes usos de terra e coberturas vegetais que existem na região. Foram criadas cinco categorias pra abarcar as regiões existentes na Amazônia e que poderiam influenciar nos casos de leishmaniose cutânea: a cobertura florestal, que é o principal habitat dos vetores; as plantações permanentes, que também podem atuar como habitat e fonte de alimento para os vetores; áreas desflorestadas, nas quais as interações entre pessoas e mosquitos podem se intensificar; áreas de extrativismo, outro ambiente de contato intenso entre humanos e os vetores da doença; e, por fim, áreas de pecuária, nas quais existe, em grande quantidade, alimento para mosquitos transmissores de leishmaniose cutânea.
Esta classificação permitiu aos pesquisadores estabelecer de maneira mais direta e específica relações entre o tipo de uso da terra e a incidência de casos da doença. Para surpresa do grupo, o principal achado do estudo mostrou que os casos de leishmaniose cutânea têm relação com a interação entre áreas de cobertura florestal e de criação de gado. “Observamos que a presença de gado próximo de áreas de cobertura vegetal eleva os casos de leishmaniose cutânea”, diz Kraenkel. A ocorrência de desmatamento no terreno se mostrou como o segundo fator com maior associação aos casos.
Os pesquisadores não esperavam que a presença de florestas pudesse se revelar como um fator significante, e consideraram o resultado “contraintuitivo”, mas logo conceberam uma explicação. O habitat natural do mosquito são as florestas, portanto, áreas com maior cobertura vegetal implicam naturalmente a ocorrência de mais mosquitos. Isso aumenta as chances de que ocorra a transmissão do vírus da doença. Entretanto, em matas fechadas ou no coração da Amazônia a presença de humanos é extremamente reduzida. Logo, apesar da alta população de transmissores, não há pessoas que possam ser infectadas, o que dificulta que ocorram casos em número significativo.
Essa realidade muda quando o desmatamento ocorre para a criação de gado, ensejando um aumento da população nas regiões próximas das florestas. “A transmissão ocorre nas áreas fronteiriças, nas quais de um lado acontece a criação de gado e do outro está a área com cobertura vegetal”, diz Kraenkel. “Não estamos falando de áreas preservadas, mas de remanescentes da floresta que estão misturados a regiões de criação de gado. É aí que está o problema: nosso achado sugere que é a pecuária que irá determinar qual é o efeito da cobertura vegetal”, afirma o físico. A partir dos resultados, os pesquisadores acreditam que a proximidade entre o gado e a floresta proporciona ao mosquito maior oferta de alimento, na forma das cabeças de gado e, ao mesmo tempo, aumenta a interação entre mosquitos e humanos, o que leva ao maior número de casos da doença.
Motivos ainda são incertos
Kraenkel ressalta que, ainda que tenha elaborado essa hipótese a partir da interpretação dos dados, investigá-la mais a fundo vai exigir um tipo diferente de pesquisa. “O controle e o estudo dessa doença são muito complicados, porque se trata de uma zoonose, ou seja, é transmitida por meio de animais silvestres e insetos, e é impossível obter um levantamento de quantos insetos estão contaminados e são potenciais vetores”, conta. “Então temos que fazer o exercício de pensar: o que pode levar à existência de mais ou menos mosquitos na área?” indaga.
Os autores do artigo especulam que a presença do gado próximo às regiões de floresta represente maior disponibilidade de alimento para os insetos. Esse quadro não se verificaria, por exemplo, em lavouras, uma vez que os vetores não obtêm alimento das plantações.
“Mas ainda não sabemos o que, exatamente, regula a quantidade de insetos nesta região. Pode ser que a destruição da floresta ocasione uma perturbação da biodiversidade na área da fronteira, e isso tenha favorecido o aumento de mosquitos contaminados e, consequentemente, seu contato com humanos. Onde há desmatamento, há humanos”, diz Kraenkel.
Ainda que o estudo traga tantas perguntas quanto respostas, Kraenkel diz que os resultados são importantes para pensar em políticas públicas na região e refletir sobre o próprio modo de ocupação das terras. “O mais óbvio de apontar é que, se existem áreas de fronteira entre floresta e gado, é preciso ter um cuidado aumentado. Nesses municípios deveriam ser feitas campanhas de conscientização sobre esse risco. Isso é uma política de saúde pública que pode ser adotada de forma imediata”, diz.
O trabalho também acrescenta uma peça no quebra-cabeça da relação entre desmatamento e a eclosão de epidemias, evidenciando neste caso o impacto que a pecuária pode exercer sobre a saúde das populações de cidades amazônicas. Ao pensar em medidas para favorecer a saúde pública a longo prazo, os autores recomendam, inclusive, que a atividade econômica predominante nessas áreas seja repensada. “Nossa recomendação é que tomadores de decisão priorizem investimentos em alternativas mais sustentáveis de desenvolvimento econômico na Amazônia, com o objetivo de criar um ecossistema mais saudável, tanto para o meio ambiente como para os seres humanos”, concluem no texto do artigo.
A leishmaniose cutânea causa úlceras na pele que costumam ser arredondadas e têm as bordas elevadas e avermelhadas, podendo deixar cicatrizes nos pacientes. Crédito: Organização Pan-Americana de Saúde.