Em 13 de setembro passado, o mundo da música comemorou os 150 anos de nascimento do austríaco-americano Arnold Schoenberg, um dos nomes mais influentes da música do século 20. Autor de uma obra amplamente reconhecida como uma das mais inovadoras da história da música ocidental, teve entre seus alunos compositores de grande importância para o panorama musical do século passado, como Alban Berg e Anton Webern, e destacou-se também como escritor, teórico e pintor.
Nascido em 1874 em um subúrbio de Viena, em uma família judaica oriunda do leste europeu, Arnold Schoenberg foi em larga medida autodidata na composição musical e na pintura, com a exceção da orientação eventual de seu futuro cunhado, o compositor Alexander Zemlinsky.
Um dos legados mais sólidos de toda a produção desse autodidata foi sua atuação como professor, seja na formação de inúmeros compositores ou em seus textos amplamente influentes até hoje, como o Tratado de Harmonia, Fundamentos da Composição Musical, Funções Estruturais da Harmonia, e os diversos artigos e ensaios compilados em Estilo e Ideia.
Suas primeiras composições publicadas, entre 1898 e 1906 (op.1 ao op.9), mostram um desdobramento original do legado de Richard Wagner e Johannes Brahms, na mesma época em que ele se aproxima de Gustav Mahler, que rapidamente reconhece e incentiva o trabalho do jovem compositor.
Em 1907, Schoenberg começa uma intensa produção como pintor, no mesmo momento em que a poesia de Stefan George o leva a concluir o Quarteto op. 10 como sua primeira composição musical a suspender a relação direta com a harmonia tonal. Além de George, Schoenberg compõe nessa época sobre textos de Richard Dehmel e Julius Hart e sobre traduções dos poetas simbolistas franceses Maurice Maeterlinck e Albert Giraud. Na pintura, aproxima-se de Wassily Kandinsky e integra o grupo Der Blaue Reiter (O Cavaleiro Azul), com o qual expõe seus quadros em Munique em 1911, ao lado de August Macke, Franz Marc e Gabriele Münter, entre outros.
Schoenberg assistiria ao eclodir da Primeira Guerra Mundial (durante a qual serviu no exército austríaco) e à desintegração do Império Austro-Húngaro, em momento de contato íntimo com a arte expressionista que o leva à experimentação de formas novas de estruturação do discurso musical.
Diferentemente de vários compositores de sua geração, a associação de Schoenberg com os movimentos artísticos de sua época não consistiu apenas na busca de uma forma pessoal de expressão que se situasse ora em ruptura, ora em mera continuidade da tradição clássico-romântica. A profundidade da reflexão operada por Schoenberg sobre a coerência interna do discurso musical nos séculos 18 e 19 o conduz a uma consciência aguda do estado da linguagem musical em seu tempo.
Como uma arte essencialmente não referencial (ou autorreferencial), a música erudita consolidou-se como um repertório de invenção a partir de um sistema de organização do material sonoro, socialmente compartilhado e ao mesmo tempo em constante transformação, estabelecido pela prática comum.
O impacto do avanço do imperialismo sobre a função social da arte e sobre as relações de trabalho conduziria gradualmente, durante o século 19, à marginalização do trabalho do compositor de música erudita, na gradual desarticulação de sua função social e das relações de trabalho que dela decorreriam. Esse estado de coisas conduziria a uma condição cada vez mais individualizada para a criação musical no transcorrer do século 19, e em última instância, a um estado de ausência de um sistema musical universalizante desde o início do século 20.
Nesse contexto, na segunda etapa de sua produção (entre 1907 e 1916, obras do op.10 ao op.22), Schoenberg realiza experiências variegadas em afastamento do pensamento harmônico tonal. Ele funda nessa época a Sociedade para Execuções Musicais Privadas, que estrearia obras e transcrições de Bartók, Berg, Busoni, Debussy, Korngold, Mahler, Ravel, Reger, Satie, Richard Strauss, Stravinsky e Webern, entre outros. Após um período sem a publicação de novas obras (entre 1916 e 1923), Schoenberg compartilha com seu círculo de convivência mais próximo um “método de composição com doze notas relacionadas apenas umas com as outras”.
Comumente chamado de dodecafonismo (constituindo uma primeira expressão sistemática do serialismo na música moderna), esse método orientaria, com poucas exceções, toda a obra posterior de Schoenberg (entre 1923 e 1950, obras do op.23 ao op.50), assim como boa parte da obra de seus discípulos Alban Berg e Anton Webern e de seus próprios alunos em diversas partes do mundo. O serialismo se tornaria imensamente influente na música do século 20 (como por exemplo entre os grupos Música Viva e Música Nova, no Brasil), não apenas a partir do pensamento de Schoenberg mas também pela importância central da obra de Webern sobre a geração dos compositores de vanguarda nas décadas de 1950 e 1960.
Uma imensa parcela do repertório da música erudita composto antes da formulação do dodecafonismo já havia se afastado radicalmente do pensamento harmônico tonal na construção do discurso. O serialismo foi proposto por Schoenberg como uma ferramenta para a operação com a coerência e a organicidade em larga escala, em uma tentativa de recuperação do potencial de projeção do material musical no tempo como contribuição para um planejamento formal análogo ao que operava no sistema tonal clássico e romântico. Esse mesmo potencial impinge ao serialismo sua contribuição para o ensino da composição musical em nosso tempo, como um método amplamente utilizado no repertório histórico, que contém uma implicação direta na estruturação formal do discurso, e não depende da linguagem harmônica dos séculos 18 e 19 como universo poético referencial.
Schoenberg propõe uma representação do espaço harmônico e intervalar da composição na forma de uma matriz, em uma distribuição proporcional de conjuntos formados pela multiplicação de uma sequência referencial de doze notas sem repetição. Para cada série de base em uma composição, existem 48 variantes que espelham seu conteúdo harmônico referencial. Essa circulação modular do total cromático afasta a harmonia do jogo sintático tonal e convida à conformação de entidades reconhecíveis, contornos melódicos e objetos harmônicos em um campo aberto para suas recombinações e ressignificações.
Ao colocar em prática seu método, em parte de suas composições Schoenberg permanece reminiscente da retórica do século 19, seu vício de origem. Suas canções, peças para orquestra, concertos para solista e orquestra, música de câmara, oratórios, peças para coro e óperas escritas no sistema dodecafônico abrem um universo sonoro visionário, que demandaria das gerações seguintes seu pleno desdobramento. Em suas experimentações, ele muitas vezes assume uma abordagem passadista da forma musical, em oposição ao conteúdo sonoro novo que ele engendra.
A força de expressão da obra de Schoenberg emana de suas contradições. O desmoronamento do mundo ao qual ele veio o levara à responsabilidade de desbravar caminhos inauditos. Com sua crescente devoção à fé judaica de sua origem, é comum a associação de seu trabalho à missão de um profeta e de suas tábuas da lei, como reflete seu biógrafo Allen Shawn. Um monarquista ferrenho, que sonhava com a contribuição de seu método de composição para garantir a “supremacia da música alemã por mais cem anos”, Schoenberg é obrigado a emigrar celeremente aos EUA com a ascensão do nazismo.
Seu discípulo Hanns Eisler, que se tornaria o mais importante colaborador musical no teatro épico de Bertolt Brecht (e uma figura referencial da música na Alemanha Oriental), afirmaria que “a música de Schoenberg não soa bela ao ouvinte não iniciado, porque ela espelha o mundo capitalista exatamente como ele é, sem embelezá-lo, e porque emerge dessa obra a face do capitalismo encarando-nos fixamente. Como ele é um gênio e um mestre absoluto da técnica, essa face é revelada de forma tão clara que muitos são aterrorizados por ela”.
Schoenberg firmou-se como um dos grandes artistas da música moderna, enquanto seu nome permanece muito mais lembrado de que suas obras. Consciente das exigências impostas ao ouvinte por suas composições, ao mesmo tempo nunca se afastou do modelo referencial dos mestres do passado. “Não só as novas obras de Mozart, Beethoven e Wagner sofreram resistência, mas o Rigoletto de Verdi, Madame Buterfly de Puccini e até O Barbeiro de Sevilha saíram vaiados do palco. A música nova nunca é bela ao primeiro contato”, disse.
Imagem acima: Autorretrato (nanquim sobre papel, 1918)
Maurício Funcia de Bonis é professor do Instituto de Artes da Unesp.