A cobrança de mensalidades por parte das universidades públicas foi e continua sendo objeto de inúmeros projetos de lei. A mais recente iniciativa está consubstanciada no Projeto de Lei 672, de 2024, do deputado Leonardo Siqueira (Novo), que institui o Programa SIGA (Sistema de Investimento Gradual Acadêmico) no âmbito das universidades públicas do Estado de São Paulo.
De maneira geral, os defensores dessa ideia evocam os seguintes argumentos:
1) O sistema de ensino brasileiro caracteriza-se pela desigualdade. Sobretudo nas universidades públicas, uma vez que ocorre uma transferência de renda dos mais pobres, que pagam impostos e muitas vezes não obtêm acesso a esses espaços, aos mais ricos, que ingressam na faculdade e cursam toda a graduação de forma gratuita;
2) Os dados do documento Síntese de Indicadores Sociais, publicado pelo IBGE, mostram que a taxa de ingresso no ensino superior é de 79,2% entre alunos do ensino médio privado. Esse número é muito maior em comparação ao dos alunos oriundos do ensino médio público, que é de 35,9%;
3) No ensino superior, tanto na rede pública quanto na rede privada, observa-se a existência majoritária de alunos que pertencem aos 20% das famílias com maiores rendimentos. Eles correspondem a 31,7% dos matriculados na rede pública e 37,1% dos matriculados na rede privada.
O Programa SIGA
Segundo o texto do PL 672/24, o Programa SIGA tem como objetivo “introduzir mensalidades para os estudantes das instituições de ensino superior públicas do Estado, e garantir que restrições financeiras não impeçam a conclusão do ensino superior, através de apoio financeiro do governo estadual, e estabelece diretrizes para sua elaboração e execução pelo Poder Executivo”. O valor da mensalidade de cada curso será fixado pelas universidades, individualmente.
O projeto prevê a criação de “empréstimos com amortizações contingentes à renda (ECR), modalidade de financiamento que dilui as amortizações ao longo da vida do mutuário, em prestações definidas de acordo com sua renda futura”. Ou seja, durante o curso o aluno terá à disposição empréstimos financiados com recursos públicos para atender ao pagamento das mensalidades. Após a conclusão do curso, o valor da dívida deverá ser pago pelo ex-aluno com os redimentos que auferir de sua atividade profissional.
O projeto também estabelece que o Programa SIGA deverá obedecer certos critérios: será adicionada uma sobretaxa de 25% ao montante inicial do empréstimo; o percentual de vinculação da renda auferida por sua atividade profissional que será destinado ao pagamento da dívida estudantil irá variar de acordo com as faixas da Tabela de Imposto sobre a Renda de Pessoas Físicas, e serão equivalentes à metade das alíquotas para cada faixa; e, durante o curso, o empréstimo será corrigido pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) acumulado no período.
Justificativas para o PL 672/24
Para justificar o estabelecimento da cobrança de mensalidades nas universidades, o deputado sustenta que a instituição dos Empréstimos com Amortizações Contingentes à Renda (ECR) subsidiaria apenas aqueles que não dispusessem de renda suficiente ao longo da vida para pagar sua dívida, e permitiria uma contribuição financeira dos egressos das universidades públicas. Tal inovação proporcionaria grandes benefícios para os alunos mais pobres, uma vez que 56% dos estudantes em universidades públicas brasileiras pertencem a famílias que estão entre os 20% mais ricos do país.
Além da fragilidade dos argumentos que justificam a proposta, há um problema maior. Da mesma forma que iniciativas semelhantes já debatidas anteriormente, o projeto é inconstitucional. O artigo 206, inciso IV da Constituição Federal, estabelece a gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais. No entanto, com o objetivo de discutir a ideia da cobrança de mensalidades nas universidades públicas que, periodicamente aparece na grande imprensa, vamos admitir sua legitimidade constitucional.
A proposta do deputado Leonardo Siqueira estabelece que o percentual de vinculação da renda do trabalho para o pagamento da dívida estudantil será diferente para cada faixa da Tabela de Imposto sobre a Renda de Pessoas Físicas, e equivalente à metade das alíquotas para cada faixa. “Nesse sistema, os pagamentos são diluídos ao longo da vida do indivíduo, com prestações ajustadas de acordo com sua renda futura, o que torna o pagamento progressivo”, diz a proposta.
A tentativa de amenizar o impacto da proposta com a diluição dos pagamentos no tempo não esconde o fato de que o aluno formado em uma universidade pública do Estado de São Paulo terá começado sua vida profissional com uma dívida. Dívida que pode tornar-se um problema, dependendo do comportamento das taxas de inflação e da variação dos preços que compõem o IPCA.
A tabela abaixo simula um período de 4 anos de duração de um curso de graduação. Admitindo-se que as três públicas paulistas cobrassem o mesmo valor das mensalidades, o aluno egresso terminaria seu curso com uma dívida de R$ 402.456,00.
A proposta utiliza como justificativa o argumento de que 56% dos estudantes em universidades públicas brasileiras pertencem às famílias que estão entre os 20% mais ricos do país, segundo dados do IBGE. Esta é uma generalização que encobre o real perfil socioeconômico dos alunos das públicas paulistas.
Perfil socioeconômico dos alunos
As informações que constam do questionário socioeconômico respondido pelos alunos que prestaram vestibular na USP, Unesp e Unicamp em 2024 e realizaram suas matrículas revelam que 74,5% dos respondentes pertencem a famílias com renda entre 1 e 15 SM. Ou seja, dos 17.719 alunos que entraram nas três universidades públicas paulistas, em 2024, 13.200 são de famílias que têm uma renda entre R$ 1.412,00 e R$ 21.180,00. Por outro lado, quase metade desses alunos (47%) são de famílias que têm renda entre 1 e 5 SM (R$ 1.412,00 a R$ 7.060,00). Portanto, a maioria dos alunos das públicas paulistas não pertence às famílias mais ricas do país. E este perfil socioeconômico dos alunos das três paulistas é comum para todas as universidades públicas do país.
É tarefa complexa estimar o montante da renda familiar que permite pagar mensalidades no ensino superior para um ou mais de seus integrantes. A capacidade de pagamento está diretamente associada ao valor da renda familiar mensal e ao número de membros da família. Considerando-se que 79% dos alunos matriculados na USP, Unesp e Unicamp em 2024 pertencem a famílias que possuem de 3 a 5 membros, e lembrando a renda familiar entre 1 e 5 SM citada acima, pode-se afirmar que um pequeno número de famílias teria condições de pagar mensalidades para um ou mais de seus integrantes.
É oportuno lembrar que USP, Unesp e Unicamp reservam 50% das vagas para alunos que tenham cursado o ensino médio integralmente na rede pública de ensino. Isso fragiliza o argumento de que são os mais ricos, que cursam o ensino fundamental e médio em escolas privadas de melhor qualidade, aqueles que mais ingressam nas faculdades públicas.
Admitindo que, em 2023, na Unesp, 38.770 alunos de graduação pagassem mensalmente R$ 1.600,00, teríamos: 38.770 X R$ 1.600,00 X 12 meses = R$ 744.384.000,00 obtidos com as receitas de mensalidades. Valor que, no caso da Unesp, corresponde a 9,9 % da execução financeira no ano de 2023 e que seria suficiente para pagar 11% das despesas de pessoal no mesmo ano.
No entanto, a suposição de que 38.770 alunos têm condições de pagar mensalidades dificilmente encontra correspondência na realidade, como já observado.
Diferenças no custo do aluno entre públicas e privadas
Há ainda a questão das diferenças entre o custo/aluno observadas nas comparações entre universidades públicas e universidades privadas. De acordo com o relatório “Um Ajuste Justo – análise da eficiência e equidade do gasto público no Brasil”, publicado pelo Banco Mundial em 2018, no período entre 2013 e 2015 o custo médio anual por estudante em universidades privadas sem e com fins lucrativos foi de aproximadamente R$12.600,00 e R$14.850,00, respectivamente. Em universidades públicas federais, a média foi de R$40.900,00, enquanto nas públicas estaduais o custo foi de aproximadamente de R$ 32.200.
Essa diferença do custo/aluno entre as universidades públicas e privadas apontada pelo Banco Mundial é tendenciosa, uma vez que não considera:
1) Os diferentes regimes de trabalho dos docentes e dos servidores técnico-administrativos das universidades públicas e privadas. De modo geral, as faculdades privadas não têm sob sua responsabilidade o pagamento dos aposentados, não têm um plano de carreira para os docentes, remuneram os professores por hora/aula e não por regime de trabalho, não têm programas de assistência ao estudante e, comparativamente às universidades públicas, os valores do investimento em pesquisa e em serviços de informática são menores.
2) A qualidade e quantidade da infraestrutura para a realização das pesquisas, as clínicas e laboratórios para as aulas práticas (odontologia, fisioterapia, farmácia, química, rádio e televisão, fonoaudiologia) existentes nas públicas e que são financiadas em grande parte com recursos orçamentários.
Os fatores listados acima são suficientes para entender as diferenças de valores relativas ao custo/aluno. Por último, é preciso considerar que o relatório do Banco Mundial, e as inúmeras reportagens publicadas na grande imprensa a favor do ensino pago nas universidades públicas, fazem parte de um lobby que beneficia o grande capital privado que, nos últimos anos, vem investindo pesadamente no ensino superior no Brasil.
José Murari Bovo é docente aposentado do Departamento de Economia da Faculdade de Ciências e Letras – UNESP – Campus de Araraquara.
Os artigos de opinião assinados não refletem necessariamente o ponto de vista da instituição.
Imagem acima: alunos da Faculdade de Ciências Farmacêuticas do Campus de Araraquara. Crédito: Eleiete Soares.