Nova proposta que abre espaço para cobrança de mensalidade nas universidades estaduais paulistas esbarra em inconsistências

Projeto de Lei apresentado na Alesp em 2024 estabelece possibilidade de que instituições de ensino superior públicas do estado cobrem por acesso ao ensino. Alunos receberiam empréstimo, com correção pelo IPCA e 25% de sobretaxa sobre o montante inicial, a ser pago ao longo de sua vida profissional. Proposta, além de inconstitucional, erra ao projetar perfil socioeconômico dos estudantes e teria impacto pequeno no caixa das universidades.

A cobrança de mensalidades por parte das universidades públicas foi e continua sendo objeto de inúmeros projetos de lei. A mais recente iniciativa está consubstanciada no Projeto de Lei 672, de 2024, do deputado Leonardo Siqueira (Novo), que institui o Programa SIGA (Sistema de Investimento Gradual Acadêmico) no âmbito das universidades públicas do Estado de São Paulo.

De maneira geral, os defensores dessa ideia evocam os seguintes argumentos:

1) O sistema de ensino brasileiro caracteriza-se pela desigualdade. Sobretudo nas universidades públicas, uma vez que ocorre uma transferência de renda dos mais pobres, que pagam impostos e muitas vezes não obtêm acesso a esses espaços, aos mais ricos, que ingressam na faculdade e cursam toda a graduação de forma gratuita;

2) Os dados do documento Síntese de Indicadores Sociais, publicado pelo IBGE, mostram que a taxa de ingresso no ensino superior é de 79,2% entre alunos do ensino médio privado. Esse número é muito maior em comparação ao dos alunos oriundos do ensino médio público, que é de 35,9%;

3) No ensino superior, tanto na rede pública quanto na rede privada, observa-se a existência majoritária de alunos que pertencem aos 20% das famílias com maiores rendimentos. Eles correspondem a 31,7% dos matriculados na rede pública e 37,1% dos matriculados na rede privada.

O Programa SIGA

Segundo o texto do PL 672/24, o Programa SIGA tem como objetivo “introduzir mensalidades para os estudantes das instituições de ensino superior públicas do Estado, e garantir que restrições financeiras não impeçam a conclusão do ensino superior, através de apoio financeiro do governo estadual, e estabelece diretrizes para sua elaboração e execução pelo Poder Executivo”. O valor da mensalidade de cada curso será fixado pelas universidades, individualmente.

O projeto prevê a criação de “empréstimos com amortizações contingentes à renda (ECR), modalidade de financiamento que dilui as amortizações ao longo da vida do mutuário, em prestações definidas de acordo com sua renda futura”. Ou seja, durante o curso o aluno terá à disposição empréstimos financiados com recursos públicos para atender ao pagamento das mensalidades. Após a conclusão do curso, o valor da dívida deverá ser pago pelo ex-aluno com os redimentos que auferir de sua atividade profissional.

O projeto também estabelece que o Programa SIGA deverá obedecer certos critérios: será adicionada uma sobretaxa de 25% ao montante inicial do empréstimo; o percentual de vinculação da renda auferida por sua atividade profissional que será destinado ao pagamento da dívida estudantil irá variar de acordo com as faixas da Tabela de Imposto sobre a Renda de Pessoas Físicas, e serão equivalentes à metade das alíquotas para cada faixa;  e, durante o curso, o empréstimo será corrigido pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) acumulado no período.

Justificativas para o PL 672/24

Para justificar o estabelecimento da cobrança de mensalidades nas universidades, o deputado sustenta que a instituição dos Empréstimos com Amortizações Contingentes à Renda (ECR) subsidiaria apenas aqueles que não dispusessem de renda suficiente ao longo da vida para pagar sua dívida, e permitiria uma contribuição financeira dos egressos das universidades públicas. Tal inovação proporcionaria grandes benefícios para os alunos mais pobres, uma vez que 56% dos estudantes em universidades públicas brasileiras pertencem a famílias que estão entre os 20% mais ricos do país.

Além da fragilidade dos argumentos que justificam a proposta, há um problema maior. Da mesma forma que iniciativas semelhantes já debatidas anteriormente, o projeto é inconstitucional. O artigo 206, inciso IV da Constituição Federal, estabelece a gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais.  No entanto, com o objetivo de discutir a ideia da cobrança de mensalidades nas universidades públicas que, periodicamente aparece na grande imprensa, vamos admitir sua legitimidade constitucional.

A proposta do deputado Leonardo Siqueira estabelece que o percentual de vinculação da renda do trabalho para o pagamento da dívida estudantil será diferente para cada faixa da Tabela de Imposto sobre a Renda de Pessoas Físicas, e equivalente à metade das alíquotas para cada faixa. “Nesse sistema, os pagamentos são diluídos ao longo da vida do indivíduo, com prestações ajustadas de acordo com sua renda futura, o que torna o pagamento progressivo”, diz a proposta.

A tentativa de amenizar o impacto da proposta com a diluição dos pagamentos no tempo não esconde o fato de que o aluno formado em uma universidade pública do Estado de São Paulo terá começado sua vida profissional com uma dívida. Dívida que pode tornar-se um problema, dependendo do comportamento das taxas de inflação e da variação dos preços que compõem o IPCA.

A tabela abaixo simula um período de 4 anos de duração de um curso de graduação. Admitindo-se que as três públicas paulistas cobrassem o mesmo valor das mensalidades, o aluno egresso terminaria seu curso com uma dívida de R$ 402.456,00. 

A proposta utiliza como justificativa o argumento de que 56% dos estudantes em universidades públicas brasileiras pertencem às famílias que estão entre os 20% mais ricos do país, segundo dados do IBGE. Esta é uma generalização que encobre o real perfil socioeconômico dos alunos das públicas paulistas.

Perfil socioeconômico dos alunos

As informações que constam do questionário socioeconômico respondido pelos alunos que prestaram vestibular na USP, Unesp e Unicamp em 2024 e realizaram suas matrículas revelam que 74,5% dos respondentes pertencem a famílias com renda entre 1 e 15 SM. Ou seja, dos 17.719 alunos que entraram nas três universidades públicas paulistas, em 2024, 13.200 são de famílias que têm uma renda entre R$ 1.412,00 e R$ 21.180,00. Por outro lado, quase metade desses alunos (47%) são de famílias que têm renda entre 1 e 5 SM (R$ 1.412,00 a R$ 7.060,00). Portanto, a maioria dos alunos das públicas paulistas não pertence às famílias mais ricas do país. E este perfil socioeconômico dos alunos das três paulistas é comum para todas as universidades públicas do país.

É tarefa complexa estimar o montante da renda familiar que permite pagar mensalidades no ensino superior para um ou mais de seus integrantes. A capacidade de pagamento está diretamente associada ao valor da renda familiar mensal e ao número de membros da família. Considerando-se que 79% dos alunos matriculados na USP, Unesp e Unicamp em 2024 pertencem a famílias que possuem de 3 a 5 membros, e lembrando a renda familiar entre 1 e 5 SM citada acima, pode-se afirmar que um pequeno número de famílias teria condições de pagar mensalidades para um ou mais de seus integrantes.

É oportuno lembrar que USP, Unesp e Unicamp reservam 50% das vagas para alunos que tenham cursado o ensino médio integralmente na rede pública de ensino. Isso fragiliza o argumento de que são os mais ricos, que cursam o ensino fundamental e médio em escolas privadas de melhor qualidade, aqueles que mais ingressam nas faculdades públicas.

Admitindo que, em 2023, na Unesp, 38.770 alunos de graduação pagassem mensalmente R$ 1.600,00, teríamos: 38.770 X R$ 1.600,00 X 12 meses = R$ 744.384.000,00 obtidos com as receitas de mensalidades. Valor que, no caso da Unesp, corresponde a 9,9 % da execução financeira no ano de 2023 e que seria suficiente para pagar 11% das despesas de pessoal no mesmo ano.

No entanto, a suposição de que 38.770 alunos têm condições de pagar mensalidades dificilmente encontra correspondência na realidade, como já observado.

Diferenças no custo do aluno entre públicas e privadas

Há ainda a questão das diferenças entre o custo/aluno observadas nas comparações entre universidades públicas e universidades privadas. De acordo com o relatório “Um Ajuste Justo – análise da eficiência e equidade do gasto público no Brasil”, publicado pelo Banco Mundial em 2018, no período entre 2013 e 2015 o custo médio anual por estudante em universidades privadas sem e com fins lucrativos foi de aproximadamente R$12.600,00 e R$14.850,00, respectivamente. Em universidades públicas federais, a média foi de R$40.900,00, enquanto nas públicas estaduais o custo foi de aproximadamente de R$ 32.200.

Essa diferença do custo/aluno entre as universidades públicas e privadas apontada pelo Banco Mundial é tendenciosa, uma vez que não considera:

1)  Os diferentes regimes de trabalho dos docentes e dos servidores técnico-administrativos das universidades públicas e privadas. De modo geral, as faculdades privadas não têm sob sua responsabilidade o pagamento dos aposentados, não têm um plano de carreira para os docentes, remuneram os professores por hora/aula e não por regime de trabalho, não têm programas de assistência ao estudante e, comparativamente às universidades públicas, os valores do investimento em pesquisa e em serviços de informática são menores.

2) A qualidade e quantidade da infraestrutura para a realização das pesquisas, as clínicas e laboratórios para as aulas práticas (odontologia, fisioterapia, farmácia, química, rádio e televisão, fonoaudiologia) existentes nas públicas e que são financiadas em grande parte com recursos orçamentários.

Os fatores listados acima são suficientes para entender as diferenças de valores relativas ao custo/aluno. Por último, é preciso considerar que o relatório do Banco Mundial, e as inúmeras reportagens publicadas na grande imprensa a favor do ensino pago nas universidades públicas, fazem parte de um lobby que beneficia o grande capital privado que, nos últimos anos, vem investindo pesadamente no ensino superior no Brasil.

José Murari Bovo é docente aposentado do Departamento de Economia da Faculdade de Ciências e Letras – UNESP – Campus de Araraquara.

Os artigos de opinião assinados não refletem necessariamente o ponto de vista da instituição.


Imagem acima: alunos da Faculdade de Ciências Farmacêuticas do Campus de Araraquara. Crédito: Eleiete Soares.