Matheus Nogueira Schwartzmann*
Neste mês de janeiro, no dia 29, temos uma importante data para celebrar: o Dia Nacional da Visibilidade Trans. A data foi escolhida depois que, em 2004, se organizou um ato nacional para o lançamento da campanha “Travesti e Respeito”, um marco na história do movimento contra a transfobia e na luta por direitos da comunidade trans. Durante todo o mês – também conhecido como Janeiro Lilás – associações, instituições e coletivos diversos se engajam pela celebração e pela reafirmação da importância da luta pelos direitos das pessoas trans no Brasil.
É também uma estratégia, como a de outras agendas, de buscar sensibilizar a sociedade por mais conhecimento e maior reconhecimento das identidades de gênero, com o intuito de combater os estigmas e a violência sofridos pela população trans e travesti.
O termo trans, inclusive, abarca um grande número de identidades: travestis, mulheres e homens transgêneros, pessoas intersexo, pessoas não-binárias, entre outras. Também têm sido adotados outros termos, seguindo uma epistemologia trans, isto é, que não se submete apenas a conceitos gestados pela cisgeneridade, como as identidades transvestigêneres e transmasculinas. No primeiro caso, trata-se de termo cunhado pela transativista Indianare Siqueira para designar “pessoas que se entendem para além de vestes, roupas ou órgãos genitais”, e é um termo que busca valorizar todos os atravessamentos que se dão dentro da interseccionalidade da letra T, da famosa sigla LBTQIA+. O segundo, que não nega o primeiro, é um termo que abrange indivíduos transgêneros cujas identidades de gênero são masculinas, isto é, que se identificam com muitos traços de masculinidade, mas não desejam se descrever como um “homem”.
Em oposição a toda essa gama de formas de identificação trans está a cisgeneridade: é ela que demarca a diferenciação sexual binária, fixando “identidades sexuais nos corpos”, estabelecendo ainda uma “hierarquia social” que vai considerar “abjeto todo corpo que fugir à tal normatividade”. Por cisgeneridade, podemos compreender, portanto, o ambiente cultural em que se estabelecem práticas sociais, linguísticas e políticas que culminam na elaboração de uma doxa em que as identidades dominantes são cisgêneras e heterossexuais.
O conceito de cisgeneridade tem muitos pontos em comum com o de branquitude, por exemplo, e nos permite reconhecer que a sociedade é muito homogênea, muito excludente e violenta. Basta que olhemos em torno de nós para reconhecermos que as pessoas que nos cercam, especialmente nas instituições – como a própria Unesp – são em sua grande maioria cisgêneras e brancas.
O universo de definições relativas a gênero é amplo e complexo, como tudo aquilo que é humano. E a visibilidade é justamente esse gesto de nomear, reconhecer, afirmar, sem tabus e sem interdições. Nesse sentido, de algum modo, a data que aqui celebramos já cumpre parte de seu objetivo.
Saúde e visibilidade
A exclusão e a violência físicas e simbólicas infringidas à comunidade trans, no entanto, é real, atravessa a vida de muitas pessoas e impede o acesso de jovens à educação de qualidade, excluindo travestis e transexuais do acesso à Escola básica e à Universidade pública.
Pessoas transvestigêneras costumam ser expulsas de casa e da escola por volta de seus 10 ou 12 anos. Com baixa escolaridade e sem nenhum apoio familiar, frequentemente encontram na prostituição uma forma de subsistência. Com as pessoas transmasculinas o cenário não é diferente e passa ainda por uma questão relevante de saúde pública: são afetadas pela pobreza menstrual que impede a circulação em espaços sociais diversos de todas as pessoas que menstruam. Dados atuais da ANTRA – Associação Nacional de travestis e transexuais indicam ainda que pessoas transmasculinas e transvestigêneres compartilham uma expectativa de vida de 35 anos – menos que a metade de pessoas cis, que é de 74 anos – e assumem funções precarizadas relacionadas, especialmente, ao trabalho sexual. O cenário é devastador: o Brasil é, pelo 12º ano consecutivo, o país que mais mata pessoas trans no mundo, especialmente travestis e mulheres trans. Quando racializadas, a situação é ainda mais grave.
Na lei, há esforços para acolher essa população, como o Decreto nº 8.727, de 28 de abril de 2016, que dispõe sobre o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de travestis e transexuais no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional. No entanto, para a lei “pegar”, como se diz no Brasil, é preciso tempo, esforço, fiscalização e punição para os casos em que seja desrespeitada: o que é uma realidade ainda bastante distante.
Impedidas de ir à escola e sem ter suas identidades reconhecidas, essas pessoas são alijadas de inúmeros direitos: não têm acesso à saúde, nem à formação de qualidade universidade, com baixíssima empregabilidade.
No caso específico da saúde, é preciso que o sistema esteja preparado para atender pessoas trans em toda a sua dignidade de pessoa humana. É preciso reconhecer que essas pessoas têm demandas específicas, como homens com útero e mulheres com próstata, realidade frequentemente ignorada pelo SUS e pelos planos privados de saúde. É preciso reconhecer, ainda, que existem pessoas que menstruam e que gestam, para além das normas da cisgeneridade, e que esses termos não se referem a uma realidade identitária, mas a uma realidade que é dupla, social e material.
E mais, que o uso do termo “pessoas que menstruam” não assim é um gesto TRANSloucado de uma comunidade que, como dizem por aí, teria por objetivo implementar uma ditadura gay (sic) no Brasil. Trata-se, ao contrário, de um uso que vem sendo proposto e reconhecido por órgão nacionais e internacionais, como o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), que reconhecem o termo “pessoas que menstruam” ao discutir a dignidade menstrual, lembrando assim que “todas as pessoas que menstruam têm direito à dignidade menstrual, o que significa ter acesso a produtos e condições de higiene adequados”.
O termo, portanto, para além de um exercício de linguagem e muito antes de constituir uma identidade, tem por objetivo permitir que políticas públicas sanitárias e de saúde possam incluir não apenas mulheres adultas cisgêneras que menstruam em seus programas, como também crianças, pessoas intersexo, homens trans e pessoas não-binárias que possuem útero e, portanto, menstruam. O mesmo para pessoas com pênis, mamas, etc.
Linguagem e identidade
E então entramos no terreno da linguagem. Nos últimos anos, por exemplo, muito tem se falado sobre linguagem neutra, linguagem não-binária e linguagem inclusiva. Em todos os debates, o que se vê é um exercício de violência contra quaisquer identidades desviantes que busquem, vejam só, o direito de serem nomeadas. Sem acolhimento, sem respeito, sem escuta.
E muitos defendem a língua sem mesmo saber como ela funciona! Basta olhar para o seu passado para percebermos que a língua muda o tempo todo e, na verdade, apenas descreve as novas realidades que a cultura humana vai produzindo. Os trovadores portugueses, por exemplo, lá no séc. XII, só podiam marcar o gênero feminino de suas musas usando os pronomes possessivos: “mia senhor” era o modo como se referiam às senhoras, às mulheres. Somente depois de muitos séculos é que se reconheceu que uma mulher poderia ser “minha senhora”, e não apenas “minha senhor”. Isso foi fruto de uma mudança social que promoveu uma mudança na língua. Na França, até hoje, não existem nomes femininos para muitas profissões, sendo comum, por exemplo, se referir a uma juíza como “madame le juge” (senhora juiz)! O que, nós brasileiros achamos muito “atrasado” e machista.
A questão de gênero na língua é, portanto, antiga… e sempre esteve relacionada com o respeito e com a dignidade humana. Aquilo que vulgarmente se chama de linguagem neutra, mas que deveria ser chamada de linguagem não binária ou inclusiva, tem por objetivo respeitar a diversidade de pessoas que vivem como cidadãs no nosso país.
O objetivo da linguagem não binária não é neutralizar toda a língua. Não faz sentido, por exemplo, mudar palavras como cidade, febre, ânsia, porque não têm função adjetiva. O uso da forma neutra, de pronomes de tratamento, demonstrativos ou nomes substantivos e adjetivos, tem por objetivo o respeito às pessoas que assim preferem ser tratadas. Lição antiga que aprendíamos ainda dentro de casa: tratar as pessoas com respeito, pedir por favor, dizer obrigado… não nos custa nada. Ódio e humilhação não são um caminho para o bem e para a felicidade.
Há, no entanto, uma fixação na cultura cisgênera pelas classificações sexistas. Roupas e genitais são por isso mesmo recorrentes em discursos intolerantes de gênero, o que a história recente do Brasil confirma, fácil e infelizmente, seja pela “mamadeira de piroca” (sic), evocada na campanha eleitoral do ex-presidente, seja pelas cores azul e rosa do discurso da ex-ministra Damares Alves. Mas não somente: lojas de brinquedo, lojas de roupas infantis, chás-revelação, roupas de cama, acessórios para cozinha, automotivos, tudo pode ser dividido segundo duas cores, dois gêneros, dois sexos. O mesmo ocorre com os banheiros, cuja existência tem um fim muito próprio que antecede qualquer preocupação com genitais humanos, mas que são verdadeiros símbolos arquitetônicos da exclusão de gênero. E já dizíamos, anteriormente, que ao contrário, o universo dos gêneros é bem mais complexo que apenas esse binarismo…
Vamos percebendo que o problema do gênero é na verdade um problema de sexismo, isto é, de uma atitude cultural sobre os sexos que contamina todas as esferas da vida humana. E a dificuldade das pessoas em reconhecer o amplo universo da diversidade de gênero reside no quanto acreditam nesse sistema binário. Crenças e valores é que acabam determinando as violências, as exclusões, os apagamentos.
Por isso, antes de repensar todo o sistema de concordância nominal do português, é mais importante produzir um discurso acolhedor. É mais importante reconhecer que o outro ser humano diante de você espera, apenas, ser tratado com dignidade. Homens trans, mulheres trans e travestis, nas escolas, na família, em empregos formais, em atendimentos médicos pelo SUS ou em clínica e hospitais privados, em estabelecimentos comerciais, não são acolhidas e têm sua identidade de gênero desrespeitada. É uma parcela expressiva da população brasileira que enfrenta, como já dissemos, grande vulnerabilidade social, baixíssima empregabilidade e uma significativa evasão escolar. Uma vez acolhidas, acolhidos, acolhides, interlocutoras e interlocutores estarão já previstos na mensagem, em um sinal de boa vontade, reciprocidade e gentileza.
No caso de uso de artigos antes de nomes de pessoas, o ideal é saber como essas pessoas se identificam e chamá-las pelo seu nome, isto é, pelo nome pelo qual decidiram ser chamadas. Assim como nos habituamos a chamar amigos, parentes e pessoas famosas por apelidos e nomes inventados, podemos (e devemos) nos dirigir às pessoas que adotem nome distinto daquele de registro, respeitando essa sua escolha.
Quanto ao problema específico do nome, a pesquisadora Josy Maria Alves de Souza esclarece que, embora o prenome seja o “nome que distingue o indivíduo dentro de sua família, o nome social torna reconhecida a identidade de gênero da pessoa transgênero para si própria, nomeando-a e distinguindo-a dentre as pessoas da comunidade da qual ela faz parte”.
Isso se mantém até que se “proceda a retificação de prenome, em conformidade com a sua identidade de gênero no registro civil, quando, então, adquire o status de nome civil”. Nesse caso, não cabe a ninguém determinar se o nome de uma pessoa é “de batismo”, “de registro”, “civil” ou “social”, uma vez que “o nome civil faz parte da identidade transgênero [e que] os sujeitos que se autodeclaram travestis ou transexuais e que o adotam também o tomam pela terminologia tão somente de ‘nome’, em seu cotidiano”. Algo que parece ser muito simples é, no entanto, um direito negado, pois frequentemente esse nome não é reconhecido e acatado no próprio contexto familiar.
Em resumo: homens trans esperam ser tratados no masculino. Mulheres trans e travestis, no feminino. Pessoas não binárias apresentarão, quando for o caso, os pronomes com os quais preferem ser tratades.
Ver para existir
O Dia Nacional da Visibilidade Trans tem como objetivo conscientizar a população em geral sobre a luta por direitos das identidades trans. Mas essa não pode ser a luta de um dia.
É importante que lutemos sempre contra o discurso imperioso, da ordem da homogeneidade, da conformidade e da conservação, este que faz valer a sua verdade, este que nos últimos anos passou por cima de tantos de nós, com sua violência atroz. A violência aqui é de toda ordem: de efeito no discurso, que silencia a diversidade na língua, a efeito material, que mata, anula e discrimina a diversidade de corpos e subjetividades.
Nas nossas relações sociais, no seio familiar, no trabalho, nos espaços de lazer, esse ocultamento das formas de violência mais visíveis é mais intenso, pois temos a impressão de que há mistura, cordialidade e respeito, um mundo de parecer, onde, na verdade, se estabelece um exercício profundo de triagem que visa a homogeneidade e a normatização dos corpos e da linguagem. As sujeitas, mulheres, pessoas trans, tranvestisgêneres e transmasculinas, especialmente, acabam, desse modo, submetidos à violência normativa, porque os mecanismos de violência são invisíveis, camuflados, naturalizados.
Seguindo os passos da Unesp, que tem reafirmado seu compromisso com a garantia de direitos e de respeito ao corpo docente, técnico e discente, rechaçando veementemente quaisquer formas de assédio, discriminação e violências por identidade de gênero, precisamos urgentemente reconhecer o nosso papel como formadores, como instituição e como cidadãos, para colocar em prática ações que, para além dos sistemas já preestabelecidos, nos permitam produzir uma liberdade que se traduza, finalmente, em existência, reconhecimento e dignidade.
Imagem acima: bandeira do orgulho transgênero. DepositPhotos.
*Matheus Nogueira Schwartzmann é professor de Linguística e Semiótica no Curso de Letras da Unesp, no câmpus de Assis, Coordenador do Programa de Pós-graduação em Linguística e Língua Portuguesa da Unesp de Araraquara e Membro da Comissão de Diversidade de Gênero e Sexual da Coordenadoria de Ações Afirmativas, Diversidade e Equidade – CAADI.