Neste ano em que comemoramos o aniversário de 200 anos da Independência do Brasil, não têm faltado celebrações para todos os gostos e interesses. Boa parte delas acena com revisões do passado e promete dar voz a mulheres, indígenas, negros e trabalhadores braçais em uma história que até agora foi contada por eruditos, institutos históricos e museus.
No meio acadêmico e da divulgação científica, a Revista Pesquisa FAPESP, por exemplo, dedicou praticamente toda a sua edição de agosto, a de número 318, ao tema, com uma capa estampando com proeminência o fardão de D. Pedro, sobrevoado por duas cabeças em tamanho reduzido, representando um negro e um índio. O título que acompanha a capa – ”Outras faces da Independência” – sugere que, nesta montagem, as cabeças estão ali para ocupar o lugar da efígie do até agora heroicizado príncipe regente, e apontar para novas direções na interpretação do processo.
D. Pedro I, por sua vez, ainda não perdeu sua centralidade no cenário das celebrações. Seja na reconstituição de seu trajeto de 64 km, percorrido desde Santos até o Pátio do Colégio, seja na busca pela identificação do local exato do episódio do grito ou na controversa exposição de seu coração no Palácio do Itamaraty em Brasília. E retornaram para o público obras monumentais evocadoras do protagonismo do monarca e das elites nesse processo, tais como o edifício do Museu do Ipiranga e o quadro Independência ou morte, de Pedro Américo, de 1888.
O que significa constatar que o letramento visual de uma nação de passado colonial ainda está muito baseado nos seus símbolos nacionais, mesmo quando este tipo de construção é fortemente criticado pela produção acadêmica? E se esta mesma nação possui um quarto de sua população na faixa de 15 a 29 anos, mas 28,6% dos seus jovens entre 15 e 17 anos não têm acesso ao ensino médio[1]; se ela apresenta os piores índices de pobreza, de pobreza extrema e de desigualdade social entre os países do G20; e se 28 milhões de seus cidadãos vivem abaixo da linha da pobreza, sendo que pelo menos 221 mil indivíduos estão em situação de rua (aliás, 21 mil deles vivem em São Paulo, local que as elites envolvidas no processo da Independência promoveram a berço da emancipação)?
Essa constatação mostra o quanto a cultura visual de uma nação, apresentada por meio de imagens, edificações no espaço público e roteiros, pode apontar para um rumo totalmente diferente daquele que vem sendo construído pelo conjunto de livros, coletâneas, dicionários, aulas e palestras de teor crítico, que defendem uma visão oposta sobre a Independência.
Se, como defendem alguns teóricos da cultura visual, tais como James Ellkins, a produção social do ver e a produção social do visual devem ser problematizados para promover deslocamento de paradigmas visuais que perpetuam desigualdades étnico-raciais e de gênero em vários níveis do social, o letramento visual aplicado à educação pode ser um dos meios para enfrentar índices que fazem o Brasil ter tido pouco a celebrar – e mais a refletir seriamente – no 7 de setembro este ano. Um livro recém- lançado, “O sequestro da Independência: uma história da construção do mito do Sete de Setembro”, parece ser uma das ações mais concretas para pelo menos nos alertar sobre a necessidade de mudar a rota do olhar deste episódio histórico.
Pode a arte de rua, especialmente a do grafite, ensejar a ação concreta de mudar a rota do olhar para este processo histórico e para os legados de um Brasil independente que manteve a escravidão, um sistema monárquico e milhares de povos indígenas sujeitos a vários expedientes para uso da sua mão de obra e expropriação de suas terras? E quem hoje anda pelas ruas da mesma cidade escolhida pelas elites paulistas e por D. Pedro I para construir o seu grito não se depara com os gritos colossais de uma população diversa que cada vez mais se faz ouvir?
Refazendo as faces e reespacializando o processo da Independência com a arte de rua
Soluções visuais que podem estar mais próximas da produção intelectual mais recente sobre a Independência podem incluir alterar a cabeça que encima o proeminente fardão do príncipe, como fez a revista pesquisa Fapesp, mas também transformar a imagem da mulher negra – que aparece, por exemplo ajoelhada num canto na célebre tela de Armand Pallière que retrata D. Pedro I e Dona Leopoldina – desenquadrando-a da figura da ama de leite e emoldurando-a como uma monumental carregadora de livros.
É possível reespacializar a reflexão sobre o processo da Independência, deslocando-o das margens do Ipiranga para os parapeitos do Minhocão, onde a poética-grafite de artistas como Felipe Morozini apresenta frases agigantadas e expressivas de um grito de existência-resistência do povo. Ou para o bairro Cidade São Mateus, que abriga uma das maiores galerias de arte a céu aberto, na qual pode-se ver, ao revés dos quadros de Pedro Américo, grafites que agigantam pobres e pretos, e apresentam caminhos alternativos de pensamento.
E se essa sociedade de passado colonial e legado escravista passasse a se imaginar e a celebrar a sua independência através desses gritos, desses lugares e dessas figuras gigantes? O que significaria para as construções simbólicas fundadoras do Brasil?E que impactos poderiam ser gerados sobre as identidades e o existir das pessoas comuns?
A arte do grafite tem longa tradição na América Latina. Está ligada a suas lutas contra as ditaduras militares, e em São Paulo há pelo menos uma década tem se expandido pelos muros de sua área central e bairros periféricos. No caminho, ressignifica espaços baldios, a própria movimentação humana no espaço público e suas identidades por meio de instalações que podem tanto ser gigantes como de tamanho mínimo, ou ainda fraseadas. Trata-se de um acervo artístico que é público e de acessibilidade universal, que tem potencial para sustentar sólidos debates sobre o processo de independência do olhar que vem sendo produzido por jovens artistas periféricos, pretos e representantes das identidades LGBTQIA+. Eles posicionam-se contra o olhar hegemonicamente branco de uma cultura visual ainda tímida no uso de outros artefatos visuais para pensar sobre a Independência do Brasil, e que prefere desmontar e remontar artefatos já consagrados.
A arte urbana do grafite, entretanto, vem se consolidando como canal de expressão de gritos de independência. É o caso do trabalho de coletivos como o Nós Artivistas, autor de frases grafite agigantadas. Uma das mais famosas foi # VIDAS PRETAS IMPORTAM, produzida em novembro de 2020, que ocupou 1.400 mts2 de asfalto da Avenida Paulista, em frente ao MASP.
A instalação desencadeou uma sucessão de outros “gritos” em nível nacional, expressando diferentes reivindicações e propostas, entre as quais # BUSQUE RACISMO ESTRUTURAL (Avenida Faria Lima, em frente a sede do Google), # PARE O ABUSO DE PODER (Ponte Estaiada, em frente a Globo), # EDUCAÇÃO LIBERTADORA (Favela de Heliópolis – em Comemoração ao Centenário de Paulo Freire) e # ACESSEM (Theatro Municipal de São Paulo – em protesto ao Centenário da Semana de Arte Moderna).
O gradativo reconhecimento da potência social, cultural, artística e organizadora de coletividades presente em ações e movimentos como estes é demonstrado em um projeto de lei que tramita na Câmara Municipal, de autoria do vereador Quito Formiga, que reconhece a cidade de São Paulo como Galeria de Arte a Céu Aberto e que, se aprovado, criará uma importante base institucional para que nos próximos aniversários da Independência do Brasil a narrativa visual, as faces e os itinerários pelas cidades possam acompanhar com maior sintonia o tanto de avanço já alcançado na produção escrita crítica e revisora deste importante movimento.
Acesso e independência do olhar
A arte urbana do grafite amplia o acesso à arte crítica e de debate social, pois desloca o olhar das seleções, muitas vezes restritivas, dos espaços fechados dos museus e galerias e das autorias artísticas que foram tornadas icônicas por narrativas elitistas e hegemônicas. As intervenções artísticas no espaço público levam as pessoas a olharem para as suas cidades, para sua gente e para a sua história. Não só para os seus legados, mas para os seus heróis cotidianos como o pai negro, a mãe negra, o menino e a menina que brinca e cria, a cultura indígena ou africana ou os símbolos de orgulho LGBTQIA+.
Esta arte pública, dotada de um olhar autonomista, valoriza, e também tem potencial para formar e profissionalizar, ampla parcela de jovens pretos periféricos, cujas obras fornecem bases de sustentação para debates acadêmicos sobre questões cruciais da história do Brasil como raça, classe, gênero e etnia. Uma arte que, conforme proposta pelo artista-cartógrafo Denis Wood, se coloca próxima do real. Uma arte realista, não no sentido do real verdadeiro, mas no sentido de carne e osso das pessoas que podem autonomizar o ver e interferir no existir.
[1] Dados extraídos da Revista Pesquisa. FAPESP, n. 316, junho de 2022.
Denise Moura é doutora em História Econômica pela Universidade de São Paulo e professora do Departamento de História, da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, do câmpus de Franca da Unesp
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