O Brasil independente e o ensino superior: recursos escassos, rixas internas e o longo caminho até a universidade

Após ruptura, país tinha urgência em assegurar educação acadêmica para novas elites administrativas. Mas dificuldades e falta de empenho de governantes levaram à adoção de solução “provisória” que perdurou por mais de um século.

Ao ver-se o Brasil livre das amarras de Portugal, os governantes e homens de letras do país viram-se às voltas com preocupações e afazeres renovados no âmbito da educação. Afinal, como não cansavam de lembrar os visitantes estrangeiros que por aqui aportavam nas suas narrativas sobre o país, a instrução pública existente por aqui era muito deficiente para um povo que se queria independente e a caminho da civilização. O ensino superior, por exemplo. Malgrado a falta de dinheiro, a escassez de mão de obra qualificada e as muitas carências da instrução elementar e secundária, todos estavam cientes de que era imperativo dotar a jovem nação de uma instituição que formasse adequadamente os quadros administrativos de que tanto necessitava. Era urgente fundar uma universidade do recém-criado Império do Brasil.

Primeira Constituição já prometia universidades

Foi imerso nesse cenário de carências, mas também de grande entusiasmo, que teve início a elaboração, em 1823, do projeto de Constituição. Em 3 de maio, realizou-se, no prédio da Cadeia Velha, no Rio de Janeiro, a sessão solene de abertura dos trabalhos; já nesta ocasião, D. Pedro, na sua primeira “Fala do Trono”, tratou de apresentar um balanço das realizações de seu recente governo no setor (criação de bibliotecas e escolas públicas, incentivo às escolas privadas e pouco mais) e de indicar o que esperava da assembleia no tocante à instrução: “Tenho promovido os estudos públicos quanto é possível, porém necessita-se para isso de uma legislação particular”.

Sensíveis aos apelos do monarca e às carências do setor, os constituintes imediatamente nomearam uma comissão encarregada de dotar a nação de alguns princípios básicos que norteassem a prática do ensino público e privado. Os resultados aparecem no Título XIII do projeto, “Instrução Pública, estabelecimentos de caridade, casas de correção e trabalho”, artigos 250, 251 e 252, onde se lê:

“Art. 250. Haverá no Império escolas primárias em cada termo, ginásio em cada comarca e universidade nos mais apropriados locais. Art. 251. Leis regulamentares marcarão o número e constituição desses úteis estabelecimentos. Art. 252. É livre, a cada cidadão, abrir aulas para o ensino público, contanto que respondam pelo abuso”.

Vista da Santa Casa de Misericórdia e do prédio de recolhimento das órfãs do Rio de Janeiro onde funcionava a Academia Médico-Cirúrgica do Rio de Janeiro, criada por D. João VI. Pintura de Thomas Ender, 1817-1818.

Dissolvida a Constituinte, em novembro de 1823, o país teve de esperar mais alguns meses para ter uma lei diretora do ensino público. Essa veio à luz em março de 1824, na Constituição outorgada pelo primeiro Imperador. A questão do ensino ficou enquadrada no Art. 179, nos parágrafos XXXII –– “A instrução primária é gratuita a todos os cidadãos” –– e XXXIII –– “A Constituição garante colégios e universidades, onde serão ensinados os elementos das ciências, belas-letras e artes.”

Quanto ao ensino universitário, discretamente referido em ambos os textos constitucionais (1823-24), muito se esperava de sua implantação, como bem ilustra a fala do deputado constituinte Luiz José de Carvalho e Mello:

Quando nós empreendemos o grande e magnífico estabelecimento e consolidação deste império, que fará época assinalada na história dos grandes acontecimentos políticos, não nos devemos esquecer de lançar logo os alicerces da sua prosperidade futura, instituindo este monumento indelével de sabedoria, do qual sairão homens abalizados nas ciências para encher os lugares e empregos do estado.

Selo comemorativo com reprodução do decreto imperial que criou os cursos de direito de São Paulo e de Olinda.

Mello não era um entusiasta isolado. Ao contrário, a vontade dos constituintes de criar um “templo do saber” em solo brasileiro, passo decisivo para colocar o país no trilho das nações civilizadas, era grande, e inúmeras foram as propostas então apresentadas e discutidas no sentido de concretizar tão útil e nobre aspiração.

A pauta foi trazida a plenário por José Feliciano Fernandes Pinheiro, o visconde de São Leopoldo, que dizia dar voz àqueles brasileiros que tinham se dirigido a Coimbra para obter o seu cobiçado diploma universitário e que se viam agora, depois de consolidada a independência do Brasil, hostilizados e tratados como inimigos em Portugal. Todos, dizia Pinheiro, desejavam voltar para casa e dar prosseguimento aos seus estudos universitários numa instituição brasileira, cuja criação aguardavam ansiosamente. Para atender a esses e a outros jovens que desejavam aprimorar os seus conhecimentos e contribuir para o progresso da jovem nação, o deputado sugeria que se criasse o quanto antes uma universidade em São Paulo, cidade de clima ameno, localização privilegiada, bem abastecida de víveres e com um custo de vida barato.“O Tietê”, salientava Pinheiro, “vale bem o Mondego do outro hemisfério.”

Três meses depois do contundente discurso do deputado, o projeto, contendo cinco  pequenos artigos, entrou em discussão, gerando uma enorme polêmica; o problema não era se a universidade deveria ou não ser criada –– todos estavam de acordo quanto a isso ––, mas quantas deveriam ser, onde deveriam estar sediadas e quais cursos deveriam priorizar. Antes que se alcançasse um consenso, D Pedro suspendeu a Constituinte e enterrou temporariamente a discussão. Em 1827, depois de muitas idas e vindas, a “Universidade do Império do Brasil” saiu do papel –– ao menos uma pequena parte dela.

Não se pode depender de Universidades “dispendiosas”

Tendo em vista que os recursos e o material humano eram escassos, o empenho do poder executivo limitado e extrema a urgência em dotar o país de um sistema jurídico, optou-se por abrir “provisoriamente” duas Faculdades de Direito, uma em Recife e outra em São Paulo. Diz o Imperador, no decreto de criação dos cursos, que se tornara imperativo remediara notória falta de bacharéis formados para os lugares da Magistratura pelo estado de Independência Política que se elevou este Império”, e que não se poderiaobter os frutos desta indispensável instrução”, se ela se fizesse“ dependente de grandes e dispendiosos estabelecimentos de Universidades”.

Findado o governo do primeiro Pedro (1831), o sonho da tal Universidade do Império do Brasil empalideceu e os seus arautos, se não se calaram –– a discussão voltou ao parlamento em 1840, 1843, 1870 e em umas tantas outras ocasiões ––, perderam muito do entusiasmo de outrora. Em 1832, depois de sucessivas epidemias e muita pressão da classe médica –– reunida em torno da Sociedade de Medicina ––, as academias médico-cirúrgicas do Rio de Janeiro e da Bahia (cujas origens remontam ao período de D. João VI) foram transformadas nas primeiras Faculdades de Medicina. Em 1853, os cursos de direito existentes em São Paulo e em Pernambuco passaram a ser denominados Faculdades de Direito.

Ao final do século 19, entre uma iniciativa e outra, o Brasil, independente e republicano, contava com 24 institutos de ensino superior, mas ainda nenhuma universidade.

O sonho dos constituintes de 1823 concretizar-se-ia, de fato, somente um século mais tarde. Uma mobilização , em setembro de 1934, quando Getúlio Vargas e seu ministro da educação Gustavo Capanema aprovaram o estatuto de criação da Universidade de São Paulo (USP). A criação da USP surgiu como uma resposta das elites paulistas à derrota da Revolução Constitucionalista de 1932, e nasceu da união de diversas instituições de ensino superior que atuavam em São Paulo, graças a um movimento liderado por Júlio de Mesquita Filho, proprietário do Jornal O Estado de São Paulo.

O estatuto da nova universidade, em seu artigo primeiro, anunciava:

Art. 1º – A Universidade de São Paulo, instituída pelo decreto estadual nº 6.283, de 25 de janeiro de l934, tem por finalidade:
1º – promover a investigação científica, e estimular a produção literária e artística;
2º – transmitir, pelo ensino, conhecimentos de valor cultural;
3º – formar técnicos e profissionais em atividades com base científica, literária ou artística;
4º – divulgar as ciências, as letras e as artes;
5º – estimular a cooperação no trabalho intelectual. 

Jean Marcel Carvalho França é doutor em Estudos Literários pela UFMG e professor Titular de História do Brasil na Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Unesp, Câmpus de Franca.

Os artigos de opinião assinados não refletem necessariamente o ponto de vista da instituição.

Séries Jornal da Unesp

Este artigo pertente à série Brasil, que país é esse? do Jornal Unesp. Em comemoração ao bicentenário da Independência do Brasil, esta série traz artigos que analisam os caminhos que moldaram a sociedade brasileira em sua singularidade e discutem os desafios que enfrentamos atualmente.

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